“Hiperglobalização”
Expansão
das transnacionais, transportes facilitados e em especial novos acordos
comerciais ameaçam desencadear outra rodada de ataques a direitos sociais
Segundo a
expressão dos economistas Arvind Subramanian e Martin Kessler, nossas
sociedades entraram em uma era de “Hiperglobalização” [1]. Entre 1980 e 2011, o
volume de mercadorias comercializadas na esfera planetária foi multiplicada por
quatro, o nível do comércio mundial aumentou quase duas vezes mais rápido que a
produção mundial de cada ano [2]. Segundo a Organização Mundial do Comércio
(OMC), “o valor em dólares do comércio global de mercadorias aumentou mais de
7% por ano em média (…), atingindo um récorde de 18 bilhões de dólares ao final
deste período.” De acordo com eles, “a troca de serviços comerciais aumentou
ainda mais rápido, a uma taxa anual média de aproximadamente 8%, atingindo
cerca de 4 bilhões de dólares” [3].
O comércio
internacional, que representava 9% do PIB mundial em 1870, 16% em 1914, 5,5% em
1939 e cerca de 15% nos anos 1970, agora equivale a 33% [4].
Mesmo
afetado pela crise financeira de 2008 e suas repercussões na redução do
consumo, principalmente nos Estados Unidos, na China e na Europa – o volume do
comércio global cresceu 2% em 2012 contra 5,1% em 2011 (2,5% são esperados para
2013). Esse montante com força inédita na integração comercial mundial,
constitui, segundo os dois pesquisadores, a primeira característica da
“Hiperglobalização”.
A redução
tarifas alfandegárias [5], do custo dos transportes – principalmente marítimos
– e das telecomunicações, o crescimento de tecnologias facilita a
desmaterialização das trocas e serviços, a mobilidade do capital e dos fatores
de produção, bem como a multiplicação de acordos bilaterias e multilaterais de
livre-comércio que tornaram possível esta nova etapa da globalização econômica
e financeira.
Neste vasto
movimento, novas tendências estão surgindo. A hiperglobalização não se avalia
apenas quantitativamente pelo aumento do comércio internacional integrado, mas
também qualitativamente. Deste ponto de vista, ela corresponde à uma mutação
profunda e ainda não concluída das formas do sistema de produção e de comércio
em escala mundial que provoca impactos em todos os países e regiões.
Algumas das
manifestações mais relevantes são agora regularmente comentadas pelas mídias e
convocadas pelos governos para tentar justificar, junto à opinião pública, a
necessidade de colocar em pauta políticas de austeridade (salarial e social) a
fim de ganhar em competitividade no quadro de uma concorrência global acirrada.
Trata-se da ascensão da China, que ocupa agora o lugar de primeira potência
comercial com 11% de exportações mundiais (contra 1% em 1980), dos países do
Sul [6], dos fluxos comerciais Sul-Sul [7] e do desenvolvimento de múltipplas
configurações de integrações econômicas regionais.
No entanto,
outras dinâmicas modificam, pouco a pouco e mais subterraneamente, as
estruturas da globalização. A Hiperglobalização designa, na verdade, o novo
estado de seu desenvolvimento. Ela indica, em primeiro lugar, uma nova fase de
fragmentação geográfica da produção e de dissociação de funções produtivas na
escala mundial. Os fluxos comerciais se inserem agora nas “cadeias de valor”
internacionais que organizam os processos de produção em sequências distintas,
realizadas (normalmente de maneira simultânea) em diferentes lugares do
planeta, segundo as lógicas de otimização de territórios. E isto tudo em função
de sua organização fiscal, social, salarial, financeira, tecnológica,
educativa, institucional, etc.
Ao longo
dos últimos vinte anos, vivemos a implementação de um esquema agora já
estabilizado. A propriedade das empresas, de patentes, de marcas, bem como a
pesquisa e desenvolvimento (P&D), concentram-se nos centros da
economia-mundo (países da tríade, essencialmente), a concepção, a montagem e a
fabricação de produtos se realizam nos países (Ásia, América Latina, África,
Oriente Médio) e empresas às quais são submetidas tais funções, bem como a
distribuição, a venda e serviços pós-venda (Magreb ou Índia, por exemplo) [8].
Assim, as
80 000 multinacionais pesquisadas no mundo [9] (seguramente dois terços do
comércio internacional) são as principais matrizes da construção desta nova
organização da produção. Como explica a Comissão Econômica para a América
Latina e Caribe (Cepal), “as empresas multinacionais dos países desenvolvidos
transferem ou submetem uma parte de seus processos produtivos para países em
desevolvimento ou em transição. Esta fragmentação geográfica da produção opera
pelo intermediário de vários canais como investimento direto estrangeiro [10],
comércio de bens intermediários [vindos de países diferentes] [11] e da
subcontratação de serviços [12]”. Mas acrescentam: “Em temos simples, o que é
pesquisado [em um contexto de redução de taxas alfandegárias e dos custos de
transportes, de informação e de telecomunicação que permitem uma circulação sem
entraves, multiplicada, cruzada e à grande velocidade da mercadoria], é
combinar tecnologia, inovação e know-how de países desenvolvidos (économies de
maison mère) com os custos reduzidos da mão de obra dos países em
desenvolvimento (economias de fabricação)” [13].
Para a
Cepal, assim será possível “identificar três grandes redes de produção no
mundo. A ‘usina Europa’ (com seu centro na Alemanha), a ‘usina América do
Norte’ (com centro nos Estados Unidos) e a ‘usina Ásia’ (com centro no Japão,
de maneira tradicional e a China desde o último período). Estas três ‘usinas’
se caracterizam por uma taxa elevada de comércio intra regional que se organiza
em torno da produção de bens intermediários” para estes centros.
Segundo
estimativas do ministério francês do Comércio Exterior, a metade do valor das
mercadorias exportadas no mundo é constituida pelas peças e componentes
importados. Na França, essa proporção é de 25%. Nos países em desenvolvimento,
ela se situa em torno de 60%. O iPhone da Apple ou a boneca Barbie são os
símbolos desta mercadoria “Made in the World” (produzida no mundo).
É neste
contexto que emergem, desde o início dos anos 2010 e ainda mais desde 2013, as
novas formas de acordos de livre-comércio fora do quadro multilateral da OMC.
Trata-se de acordos ditos “mega-regionais” ou “mega-bilaterais”: Grande mercado
transatlântico [14], Parceria transpacífica [15], Parceria Econômica Integral
Regional (que envolve 10 países da Associação das Nações da Ásia e do Sudeste –
ASEAN – [16]), Acordo de livre comércio União Européia-Japão (em negociação),
Acordo de livre comércio entre a China, Japão e Coréia do Sul (idem).
A função
destes acordos é ao mesmo tempo política, geopolítica e econômica. Trata-se de
organizar, a longo prazo, a garantia de investimentos e de atividades dos
atores financeiros e econômicos globalizados. Isto, a fim de consolidar e de
desenvolver o valor adicionado da mercadoria no âmbito de espaços
transnacionais constituídos pelas cadeias de produção global nas quais agem e
se apoiam as multinacionais que têm interesses comuns com os atores econômicos
comerciais e financeiros regionais e locais.
Estes
acordos de nova geração têm diversas particularidades. Eles concernem os
espaços calcados nas cadeias de produção. Podem, se necessário, estender as
geografias regionais e desenhar novas fronteiras econômicas, financeiras e
comerciais entre países e blocos de países ou regiões. Recobrem os territórios
físicos, demográficos, políticos e econômicos imensos. Visam harmonizar não
somente as tarifas alfandegárias, mas também – diante dos padrões jurídicos dos
países hegemônicos da Tríade – as barreiras ditas “não tarifárias” (normas
sanitárias e fitosanitárias, condições de acesso aos mercados públicos,
direitos de propriedade intelectual (patentes), seguridade de investimentos, política
da concorrência, etc.).
Estas novas
transformações do capitalismo reforçam as dinâmicas de fusão entre os Estados
envolvidos e os interesses do mercado. Ao fazê-lo, promovem a desconexão entre
a capacidade de intervenção democrática dos povos – a única maneira de
controlar a força do capital – e a força do mercado para submeter nossas
sociedades ao seu domínio destruidor.
N’A
Dinâmica do Ocidente (1939), o sociólogo alemão Norbert Elias destaca: “Como
isto se produz em cada sistema ao equilíbrio instável, submetido a uma tensão
concorrencial em rápida progressão e desprovida de monopólio central, os
Estados mais potentes, que constituem os eixos principais do sistema, exercem
pressão uns sobre os outros, em um movimento de circular sem fim, para expansão
e fortalecimento de sua posição. Assim encontra-se a lógica do mecanismo da
luta pela hegemonia e – internacionalmente ou não – para a criação de centrais
monopolistas se estenderem pelos territórios de uma ordem de grandeza
claramente superior. E se é verdade que se trata, por enquanto, de uma
dominação limitada a alguns continentes, já vemos desenhar-se, seguindo o
transbordamento de interdependências em outras regiões, a luta pela hegemonia
em um sistema englobando toda a terra habitada” [17].
A hiperglobalização
se contituirá uma nova etapa para a monopolização do mundo pelas potências
econômicas, financeiras e estatais do “mundo ocidental” ? Esta última noção
designará a integração das elites – de onde que elas vêm, do norte ou do sul –
no seio de uma classe superior oligárquica mundializada?
De qualquer
forma, a hiperglobalização constitui o novo quadro de enfrentamento objetivo
entre os movimentos anti-sistêmicos do planeta – enfraquecidos e localizados
hoje em dia – e das forças do capitalismo financeiro.
NOTAS
[1] Arvind
Subramanian e Martin Kessler, “The Hyperglobalization of Trade and Its Future”,
Peterson Insitute for International Economics, Julho 2013. (http://www.iie.com/publications/interstitial.cfm?ResearchID=2443)
[2] Exceto durante os
dois últimos anos. Relatório sobre o comércio mundial 2013. Fatores determinam
o porvir do comércio mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC), 18 Julho
de 2013. (http://www.wto.org/french/res_f/publications_f/wtr13_f.htm)
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] A respeito deste
assunto, ler Christophe Ventura, “Que sont les douaniers devenus…” , Le Monde
Diplomatique, Octobre 2013.
[6] Eles representam
47% das exportações mundiais contra contra 34% em 1980. Para eles os
economistas do centro do sistema-mundo representavam 53% contra 66% em 1980.
[7] Isto representando
24% dos fluxos globais em 2011, contra 8% em 1990. Os fluxos Norte-Norte
representando 36%, contra 56% em 1990.
[8] A respeito deste
assunto, ler Jean-Luc Mélechon, “La Nouvel Ordre Transnational”. Nesta
reflexão, o co-presidente do Partido de Esquerda (França) precisa: “um novo
modelo de empresa (…) se contenta em possuir patentes, marcas, um talão de
cheques e cadastro de clientes. Esta forma particular de desmaterialização da
propriedade nos retorna imediatamente à importância da questão das patentes e
de licenças de marcas e logos, que constitui o coração das novas formas de
poder e de propriedade capitalista. Inúmeras são as multinacionais que
desenvolvem esta estratégia visando retirar-se ou até desconectar-se totalmente
da produção para o lucro de atividades limitando o risco de investimento:
gestão de marcas, comercialização, distribuição, atividades financeiras” (http://www.jean-luc-melenchon.fr/2013/07/24/du-chaud-et-du-froid-des-hauts-et-du-bas/).
[9] Arvind Subramanian
e Martin Kessler, “The Hyperglobalization os Trade and Its Future”, Peterson
Institute for International Economics, julho 2013.
[10] O estoque de IDE
no mundo passou de 10% do PIB mundial nos anos de 1990 à 30% em 2011. Ibid.
[11] Segundo a OMC,
“30% do total do comércio, consistem em reexportações de bens intermediários,
(…). Desde meados dos anos 1990, esta porcentagem aumentou quase 10 pontos.
[12] Segundo a OMC, em
termos de valor adicionado, “a contribuição de serviços no comércio total (…)
foi quase duas vezes maior que a parte correspondente medida em termos brutos,
passando de 23% à 45% em 2008. Os serviços contribuem significativamente ao
comércio de mercadorias, seja pelo seu papel de facilitador de transações
internacionais, seja através da sua incorporação no custo de produção total da
mercadoria”.
[13] Panorama da
inserção internacional da América Latina e do Caribe, Cepal, 2013.
[14] Ler Bernand
Cassen, “L’alibi de l’emploi pour un grand marché (transatlantique) de dupes”,
Mémoire de Luttes (http://www.medelu.org/L-alibi-de-l-emploi-pour-un-grand).
[15] Ler Christophe
Ventura, “Washington se relance dans le nouveau jeu latino-américain”, Mémoire
de luttes (http://www.medelu.org/Washington-se-relance-dans-le)
e “Le Partenariat transpacifique, nouvel outil de l’hégémonie de Washigton”,
Mémoire de luttes (http://www.medelu.org/Le-Partenariat-transpacifique).
[16] Austrália,
Birmânia, Bruneï, Comboja, China, Coréia do Sul, Índia, Indonésia, Laos,
malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietnã. As
negociações lançadas no início de 2013 devem, segundo os iniciadores, ser
concluídas em 2016.
[17] Norbert
Elias, La Dynamique de l’Occident, Calmann-Lévy, coleção Agora, Paris,
1977 (tradução do tomo 2 de Uber den Progress der Zivilisation, 1939).
Memoire des Luttes | Tradução Cristiana
Martin
Fonte: http://outraspalavras.net/
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