O Complexo
de Sansão
Wallerstein
sustenta: crise do sistema-mundo capitalista produz divisão rara entre
poderosos e gera enorme instabilidade. Será preciso definir projetos
alternativos
Na Bíblia,
há a famosa lenda do herói Sansão. São muitas as interpretações sobre seu
significado; mas Sansão, um israelita cuja força era originária de Deus, põe
abaixo o templo os inimigos filisteus (também muito poderosos), morrendo no
processo. Seu sentido, imagino, é dizer que um ato aparentemente irracional
(Sansão morre) pode ser ao mesmo tempo heróico e inteligente, porque se
converte na saída (possivelmente a única) para derrotar um inimigo forte e
“salvar seu povo”.
Parece que
temos um punhado de supostos Sansões, atualmente. Estão bloqueando, ou
procurando bloquear, o que consideram ser “compromissos” perigosos com o
inimigo. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, está dizendo que
“um mau acordo é pior que nenhum acordo”. Ele refere-se ao que enxerga como o
acordo entre os EUA e a Rússia, em torno da Síria; e a um possível acordo entre
Washington e Teerã. Na Colômbia, o ex-presidente conservador [Alvaro Uribe]
está investindo contra seu sucessor, também conservador [Juan Manuel Santos],
porque este está em negociações com as FARC, sob os auspícios de Cuba e do
Brasil.
E, é claro,
temos as não-negociações maciças, em curso nos Estados Unidos. Nelas, os
membros de ultra-direita do Congresso, em especial na Câmara dos
Representantes, estão usando sua força para vetar qualquer comprimosso com as
forças inimigas lideradas pelo presidente Obama e o Partido Democrata. Veem
como “inimigo interno” todos os republicanos que buscam algum tipo de
“compromisso”.
Não é
difícil mostrar que todos estes Sansões estão botando a casa abaixo não apenas
sobre seus inimigos mas também sobre si mesmos. Para eles, contudo, mesmo que
isso seja verdadeiro, há um timing a considerar. Estão convencidos de que
precisam agir agora, enquanto têm forças para fazê-lo. Do contrário, o inimigo
vencerá e poderá institucionalizar – ou manter – o mal que estaria sendo
cometido.
Este tipo
de luta ideológia, impermeável ao chamado pragmatismo, não foi inventado nos
últimos dez ou vinte anos. É tão velho quanto a socialização humana. Mas
assumiu uma característica especial agora, precisamente porque estamos nos
espamos de uma crise estrutural em nosso sistema-mundo capitalista. Numa crise
estrutural, pode-se esperar dois grandes fenômenos: enorme confusão intelectual
e, como consequência, mudanças selvagens de atitude, que conduzem, por sua vez,
a guinadas ainda mais bruscas.
Como há
cada vez mais grupos prontos para botar o templo abaixo, mesmo que sejam também
esmagados, quem parece mais confuso e indeciso sobre o que fazer é o chamado Establishment.
Foram-se os dias em que ele podia cinicamente manobrar e obter o que queria.
Não é mais verdade que “plus ça change, plus c’est la même chose” – ou seja,
que as mudanças são apenas aparentes.
Que podemos
fazer, os que buscamos mudanças reais, um sistema-mundo distinto do que
prevaleceu ao menos nos últimos 500 anos? A primeira coisa é não nos prendermos
aos debates e guinadas selvagens entre os Sansões e os Establishments.
Realmente não importa qual deles vença, no curto prazo.
A segunda
coisa que deveríamos fazer é não disperdiçar toda nossa energia lamentando o
fato de que quem deseja mudanças fundamentais (a chamada esquerda global) não
parece estar unida, ou ter clareza sobre seus objetivos, ou envolvida em ações
e organização urgentes. O fato é que ela própria está envolta na confusão, pelo
menos no momento.
O fato de o
templo estar caindo é algo muito além de nossas forças para contê-lo – mesmo
que o desejássemos. Mas não somos obrigados a permanecer sob a avalanche das
rochas. Precisamos tentar escapar. Podemos estar certos de que os membros mais
poderosos do Establishment também estão tentando.
Mas como
escapar, e com que objetivos? Também nós precisamos ter senso de timing, e
lembrar a diferença entre o curto prazo (três anos ou menos) e o médio prazo
(os próximos vinte a quarenta anos).
No curto
prazo, as pessoas (os 99%) estão sofrendo. Precisamos lutar para reduzir sua
dor, uma luta que deve assumir múltiplas formas. Podem ser pressões por leis,
ou decisões de órgãos do Estado, que ajudem de modo imediato os necessitados,
ou evitem danos maiores ao ambiente, ou protejam direitos de populações como os
indígenas ou as chamadas minorias sociais.
Mas no
médio prazo, precisamos tentar esclarecer a natureza das estruturas que
queremos construir, se formos bem-sucedidos na encruzilhada que nosso
sistema-mundo atravessa. Precisamos tentar entender não apenas os objetivos de
médio prazo da direita mundial, mas a natureza de suas profundas divisões
internas. A chamada esquerda está profundamente dividida, também. Precisamos
trabalhar para superar isto.
Nada
é fácil, neste tempo de transição de um sistema-mundo para outro. Mas tudo é
possível – ainda que inteiramente incerto.
Imagem: Francisco Goya, Duelo com porretes (1823, detalhe) | Tradução:
Antonio Martins
Fonte: http://outraspalavras.net/
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