SP e RIO: quem aposta na violência
Obra de Banksy com a colaboração dos grafiteiros brasileiros Os Gêmeos, em sua passagem por New York
Assassinatos
de garotos e ataques midiáticos a manifestações confirmam: há interessados em
generalizar repressão. Black-bloc é complexo, mas pode estar sendo usado
I.
Uma espiral
de fatos graves e estranhos está se sucedendo em São Paulo desde sexta-feira
(25/10), quando mascarados agrediram, num ato de violência gratuita, um coronel
da Polícia Militar. Comandantes da PM emitiram declarações como se fossem o
governo do Estado. Quase duzentas pessoas foram presas de maneira arbitrária e,
ao que tudo indica, a esmo. Um jovem de 17 anos foi assassinado domingo pela
polícia em ação torpe, provavelmente com intuito de provocar reações de
revolta. Ontem (28/10), caminhões e ônibus apareceram em chamas na rodovia
Fernão Dias, em horário propício a exposição nos noticiários de maior audiência
– sem que apareçam indícios de quem os incendiou.
Episódios
anteriores sugerem: pode estar em gestação uma crise fabricada, em que a
população, insegura e temerosa, clama pela ação das “forças da ordem” – seja
quais forem a truculência e os desdobramentos. Por isso, é importante soar o
sinal de alarme e convidar a um exame mais amplo do cenário. Talvez ele revele
que certas formas de radicalização artificial têm efeito contrário ao que
imagina quem nelas se envolve. Na aparência, elas desafiam o Estado; na
realidade, libertam seus mecanismos mais brutais de controle social, repressão
e destruição da democracia.
Vale a pena
recompor a sequência dos fatos, para tentar interpretá-los e identificar seu
sentido comum.
1. Talvez
a agressão black
bloc ao coronel Reynaldo Rossi, no terminal de ônibus D. Pedro II, sexta-feira,
tenha sido mais que um ato grotesco e covarde. Na mídia, as imagens do
espancamento estão sendo repetidas à exaustão. Mas qual o contexto em que se
produziram? Presente à cena, o repórter Piero Locatelli, de Carta Capital, fez
um relato perturbador (1 2),
do qual se destacam os seguintes trechos-chaves: “A Polícia havia acompanhado a
manifestação com um efetivo de 800 policiais [...] No terminal, mais cedo,
manifestantes utilizando a tática black bloc haviam queimado um ônibus e
destruído catracas. [...] A polícia pouco agiu para conter a depredação – uma
fila de policiais assistia ao que acontecia no local”.
Foram
quebrados bilheterias, banheiros, quiosques, orelhões, extintores e 15 caixas
eletrônicos. Só mais tarde a repressão e as prisões começaram: na Praça da Sé,
a quase um quilômetro dali, tendo por alvo não os “vândalos”, mas manifestantes
pacíficos.
Locatelli
prossegue: “Os 800 policias que acompanhavam o ato [no Terminal D. Pedro II]
esperaram o fim dele para agir com contundência. Instantes depois de um jogral
na praça da Sé, os militantes cantavam em clima de festa ‘violência é a tarifa,
fascista é a policia’. Foi quando ocorreu uma chuva de gás lacrimogêneo, vinda
de todos os lados da praça. Milhares de pessoas tentavam correr dela, sob
disparos de balas de borracha, muitas delas sozinhas. A depredação na região se
intensificou, e o medo era a regra pelas estreitas ruas do centro. A partir
dali, ocorreu uma série de ‘detenções para averiguação’”.
2. Quem
fala em nome do Estado, num regime democrático: as autoridades eleitas? Em São
Paulo, o governador Geraldo Alckmin calou-se no sábado (27/10), um dia depois
da agressão ao coronel Rossi. Mas o chefe do Centro de Comunicação Social da
Polícia Militar, major Mauro Lopes, convocou entrevista coletiva em que assumiu ares de chefe de
governo. “O Estado vai dar uma resposta muito forte a este bando de
criminosos”, disse. O jornalista Luís Nassif captou a mensagem percebeu o
risco: “Essa história da PM anunciar que vai até as últimas consequências –
respaldada por uma condenação generalizada contra os vândalos – provoca
calafrios maiores do que assistir a um quebra-quebra de black blocs. Na última
vez que a PM se comportou assim, em maio de 2006, foram assassinadas mais de
500 pessoas”. Agora, a polícia começou a barbarizar menos de 24 horas após a
fala do major Mauro Lopes.
3. As
circunstâncias em que se deu o assassinato do garoto Douglas Rodrigues, na
tarde de domingo, em Jaçanã (zona norte) são espantosas – mesmo para quem está
acostumado com a banalidade do mal, nas periferias brasileiras. A impressão
nítida é de incitação à revolta. A polícia foi chamada para uma ocorrência
vulgar: uma caixa de som em volume alto demais (“perturbação do sossego”). Mas
o PM Luciano Pinheiro Bispo “desceu do carro e pá”, no peito de Douglas,
segundo testemunhas (1 2), que negam com veemência a hipótese de disparo
acidental. O garoto – estudante, trabalhador e querido dos moradores – chegou a
indagar ao algoz, segundo a mãe: “Senhor, por que o senhor atirou em mim”?
4. A
previsível reação começou de imediato. Os moradores queimaram três
carros e enfrentaram a pedradas a tropa de choque, enviada pra reprimi-los.
Houve saques de lojas. Algo menos claro – porém, muito mais visível – deu-se
ontem, na região. Cerca de 500 pessoas participaram, em protesto, do velório de
Douglas, próximo ao local onde morreu. A manifestação pelo garoto quase
não foi noticiada pela mídia. Nos jornais da noite, as telas de milhões de
telespectadores, em todo o país, foram ocupadas por outras imagens. Na rodovia
Fernão Dias (SP-Belo Horizonte), a centenas de metros de distância da multidão,
três grandes caminhões e seis ônibus arderam. As fotos de quem os incendiou são
escassas; e a polícia não parece ter sido capaz de identificá-los (embora tenha
prendido mais 90 pessoas…). Mas hoje, os três jornais mais vendidos do país
apontam, em manchete (1 2 3), os
“responsáveis”. Em todos eles, as palavras “manifestantes” e “protesto” estão
repetidamente associadas a “quebra-quebra”, “violência” e “saques”…
II.
O
comportamento da PM nos últimos dias, em São Paulo, não é exceção. Uma vasta
reportagem da jornalista Tânia Caliari revela que, desde as manifestações de junho, as
polícias militares têm mantido um comportamento apenas aparentemente ambíguo.
Elas alternam dois tipos de desvios complementares. Em certos momentos (como em
13/6, em São Paulo), agem com selvageria cega. Em outros (como em 7/10, no
Rio), desaparecem ou assistem, impassíveis, a cenas de enorme gravidade – como
a tentativa de atear fogo à Câmara Municipal.
As duas
atitudes policiais retroalimentam-se uma à outra, em espiral. A brutalidade da
tropa exalta os ânimos dos manifestantes e leva pequenos grupos a reagir de
modo violento. As depredações promovidas por estes, nos momentos em que a
polícia se omite, amedrontam a população e sugerem que a saída, diante dos
protestos, é mais repressão.
Este
esforço para instigar apoio à violência do Estado é reforçado pela mídia. Os
jornais e TVs já não pedem abertamente repressão aos protestos, como ensaiaram
sem sucesso em junho. Agora, agem por sugestão e omissão. Cenas como a do
espancamento do coronel Reynaldo Rossi, ou da depredação de bens públicos, são
repetidas exaustivamente na TV e decoram as capas dos jornais. Mas procure
encontrar, após cada episódio, uma única matéria examinando criticamente o
comportamento da polícia. As manifestações repetem-se há cinco meses; os abusos
policiais de ambos os tipos, também. Os jornais e TVs fecham os olhos…
III.
O
surgimento, no Brasil, dos black-blocs, que praticam atos destrutivos nas
manifestações de rua, não pode ser analisado apenas à luz da ciência política
clássica. Militantes de quase todos os partidos de esquerda (do PT ao PSTU),
além de inúmeros ativistas autônomos, produziram, nos últimos meses, dezenas de
textos críticos ao bloco negro. Lembram, com base em fartos exemplos
históricos, que a ação violenta de pequenos grupos, sem apoio popular maciço,
foi sempre manipulada pelas classes dominantes para legitimar a repressão.
Muitos dos autores ressaltam que não propõem atitude pacifista incondicional.
Defendem as rupturas, quando as maiorias, convictas de que é preciso estabelecer
novas relações sociais, são impedidas de fazê-lo por leis e instituições
retrógradas. Mas se opõem a atos narcísicos, cujos praticantes tentam assumir
condição de libertadores da multidão.
Se todos
estes argumentos têm sido insuficientes para aquietar os black-blocs; se o
apoio a eles, embora ínfimo entre a sociedade, mantém-se expressivo entre os
que se reconhecem como parte das “Jornadas de Junho”, é preciso sondar as
razões. Duas hipóteses, em especial, parecem promissoras.
A primeira
é o descolamento nítido entre duas gerações da ativistas anti-capitalistas. Uma
militou ou milita no amplo arco de organizações políticas de esquerda,
amplamente predominantes até a queda do “socialismo real”. Outra começou a se
formar na virada do século, sob influência dos protestos de Seattle (1999), dos
Fóruns Sociais Mundiais (2001-2009, no Brasil) ou dos ecos do levante zapatista
(1994). Entre ambas, há um intervalo de dez anos. Mas, muito mais importantes,
um abismo teórico e de inserção política e social.
A geração histórica
teve influência reduzida nas Jornadas de Junho. PT e PCdoB tornaram-se partidos
de atuação principalmente institucional. Os sindicatos tiveram sua força
devastada pela reorganização produtiva do capital pós-moderno. PSTU e PSOL, por
ora, parecem tão incapazes de dialogar com a nova geração quanto a esquerda
radical europeia. Os movimentos sociais clássicos, muito atuantes na primeira
década do século (do MST às grandes redes, como a que lutou contra a ALCA),
ainda não conseguiram situar-se na segunda.
A nova
geração anticapitalista é extremamente ativa. Mas com raras exceções (como o
Movimento Passe Livre – MPL) não fazem parte de sua cultura e preocupações
conceitos como correlação de forças; estratégias e táticas; momentos de avanços
ou recuo. Mais: ela sente o esvaziamento da democracia e a impermeabilidade das
instituições. Não viveu o suficiente para enxergar as mudanças tímidas, mas
inéditas, vividas pelo país na última década. Para quem tem 25 anos, por
exemplo, o Bolsa-Família e a redução da miséria não são uma conquista – mas um
dado da paisagem política, que precisa ser transformada. Por isso, a nova
geração tende a ver a geração histórica como mais um grupo acomodado e
participante do condomínio das elites no poder.
Esta
hipótese – a do choque de gerações anticapitalistas – articula-se com outra. A
ação truculenta da polícia é indispensável para explicar a relevância do
black-bloc brasileiro. Ele está muito longe de ser majoritário, entre as novas
gerações. Reúne, no máximo, algumas centenas de ativistas, em cada uma das
maiores capitais. As críticas que recebem são constantes, nas redes sociais:
por legitimarem a violência; por se julgarem heróis e superiores; por não
dialogarem. Mas cada novo ato de violência policial parece ressuscitar sua
legitimidade.
Há aqui
algo que deveria alegrar a velha geração: consciência de classe. A agressão ao
coronel Reynaldo Rossi devastou a popularidade do black-bloc por alguns dias,
nas redes sociais. Era comum ver mensagens de ira contra eles, mesmo nos comentários
das comunidades dos Facebook que os apoiam. Mas isso se desfez após o
assassinato do garoto Douglas. Nos últimos meses, em meio ao debate, um poema
do marxista Bertolt Brecht foi citado inúmeras vezes, por quem se julga
anarquista: “Diz-se violento o rio, que tudo arrasta; mas não as margens, que o
oprimem…”.
IV.
Não há
problema algum em que as culturas políticas anticapitalistas sejam muito
distintas entre si: a longo prazo, esta diversidade pode ser uma riqueza. Mas,
numa época de crises e instabilidades um pré-requisito para a sobrevivência e o
futuro é saber identificar ameaças comuns. Estamos todos, neste momento
preciso, sob uma delas.
Armou-se
uma cilada. As grandes mobilizações de junho refluíram e não parece possível retomá-las, ao menos
no momento. O ataque aos símbolos do capitalismo, promovido pelos black-blocs,
não é eficaz contra o sistema, ao menos por enquanto. Não há razões para
duvidar das pesquisas de opinião, segundo as quais 95% da população
opõem-se a estes atos. Recua rapidamente, além disso, o apoio ao próprio
sentido das manifestações. Em junho, em São Paulo, 89% eram a favor delas; em
poucos meses, este índice caiu para 66%.
A polícia e
a mídia perceberam a oportunidade. Na madrugada desta terça-feira (29/10), mais
um garoto foi morto por PMs em São Paulo, em circunstâncias
muito semelhantes às de Douglas. Pouco mais tarde, mais uma manifestação de
protesto ocorreu. Nas próximas horas, os meios de comunicação que (ainda)
dominam, voltarão a associar “manifestantes” e “protesto” a “vandalismo”,
“saques” e “quebra-quebras”.
Está se
consumando, rapidamente, o cenário desastroso previsto por Luís Nassif. Ele
pode dar-se tanto como tragédia (na forma de um novo morticínio “corretivo”
contra a periferia, semelhante ao de 2006) quanto como drama arrastado (um
longo sangramento dos movimentos sociais de todos os tipos, até que percam
legitimidade junto à maioria e tornem-se impotentes para influir em 2014, que
será decisivo para o futuro do país).
Ser incapaz
de mudar de tática revelaria inteligência reduzida – como a das moscas que se
batem contra o vidro, recuando a cada choque mas insistindo no mesmo trajeto,
condenado de antemão. É preciso buscar outros caminhos, e esta responsabilidade
cabe a todos, solidariamente.
Para que
todos sejamos capazes de escapar à cilada, ninguém pode ser humilhado. Haverá
muito tempo para os debates político-ideológicos entre as várias culturas
anticapitalistas e suas nuances – mas insistir neles agora seria desastroso
para todos.
A violência
simbólica nas manifestações precisa refluir, rapidamente. Como os black-blocs
não estão inseridos nos debates que outros coletivos travam costumeiramente
entre si, será decisiva para isso a ação de grupos que souberam manter diálogo
com eles – em especial o Movimento Passe Livre (MPL), um caso notável, por
ligar-se simultaneamente às duas culturas políticas de esquerda. Mas este
silêncio da tática do bloco negro não pode (inclusive para que funcione)
significar que foram derrotados. Ao contrário, deve abrir espaço para
incorporá-los ao debate.
São Paulo e
Rio estão em sintonia, desde junho: as mesmas lutas, repressão, esperanças e
angústias. A grande manifestação preparada pelos cariocas para a próxima
quinta-feira (31/10), contra a violência policial e prisões arbitrárias das
últimas semanas pode ser um ponto de virada. Uma resposta semelhante às de
17/6, quando milhares demonstraram que as ruas, geridas autonomamente, podem
ser um espaço “sem polícia e sem violência”.
| Imagem:
Banksy e Gêmeos
Fonte: http://outraspalavras.net/
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