No coração
da selva
Só
recentemente reconhecemos imensa riqueza humanitária das civilizações
indígenas. Depois de cinco séculos de canibalização, será possível um futuro
comum?
Mesmo
quando o cientista político norte-americano Samuel P. Huntington escreveu O
Choque de Civilizações, ele se referia a conflitos entre culturas relativamente
extensas e vigorosas. Em sua classificação, o devoramento de civilizações por
outras, como temos feito com as nações indígenas ao longo dos séculos, não
poderia jamais receber o nome de choque; talvez nem de conflito, devido à
brutal incompatibilidade técnica entre elas. Aqui a classe é de canibalização.
Pois é nesses termos, bem mais amplos que os projetos de lei contra os quais se
mobilizam
agora os índios e amplos setores da sociedade brasileira, que gostaríamos de
enquadrar a velha e até aqui insuperável questão indígena.
Parte da
história está contada no indispensável Relatório
Figueiredo, de 1967. Trata-se de uma compilação de crimes realizados
sobretudo contra populações indígenas, escrito pelo procurador Jader de
Figueiredo Correa a partir de dados de Comissão de Inquérito sobre a atuação do
Serviço de Proteção aos Índios. O relatório, de 68 páginas, acompanha um
processo de 20 volumes com 4.942 folhas, mais 6 anexos com 500 folhas.
Ali estão
registrados cárcere privado e trabalho escravo de índios, tortura, roubo de
terras, abuso sexual, esbulho, mortes em massa, guerra bacteriológica, ataque
aéreo com dinamite, venda irregular de gado indígena etc. Os crimes, quase
todos documentados e com testemunhas, muitas vezes foram mutuamente acobertados
por funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), inclusive com queima
de arquivos praticada em geral pelos próprios servidores públicos do extinto
órgão – que deu lugar à Funai ainda em 1967.
Nas
palavras de Figueiredo, “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de
verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram
um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. (…)
Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos
desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos
suplícios, a título de ministrar justiça.”
Tribos
inteiras foram dizimadas, nisso que poderíamos chamar de genocídio à
brasileira, em regimes democrático e ditatorial. Mais adiante o procurador
afirma, com extrema lucidez: “A falta de assistência, porém, é a mais eficiente
maneira de praticar o assassinato.” Irretocável. “A Comissão viu cenas de fome,
de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitose externa e interna, quadros
esses de revoltar o indivíduo mais insensível.”
Não
precisamos voltar a Cabral para o registro de etnocídios em nosso vasto
território. Além do extermínio patrocinado por portugueses e desses horrores
compilados no relatório, que ocuparam algumas décadas do século 20, a
reincidência criminosa da civilização ocidental contra as populações indígenas
atravessou todos esses séculos e ainda ocorre nos dias de hoje.
Não são
poucas as ocorrências de invasão por parte de grileiros, posseiros e
fazendeiros, em diversas regiões do país, em conflitos que levam à morte de
índios ou à expulsão deles de suas terras sagradas. Podemos encontrá-los na
beira de estradas do Mato Grosso ou no centro de Porto Alegre, vidas em agonia,
tristes imagens de seres humanos esbulhados de sua tradição milenar.
Canibalização
civilizatória. Além das tribos contatadas, existem no Brasil dezenas de grupos
indígenas que jamais trocaram miçangas ou ouro por espelhinhos , que sabem da
existência de nossa subcivilização latino-americana (na classificação de
Huntington…) apenas porque veem cruzar seus céus uns pássaros roncadores de
estranhas asas, pois nunca as batem no ar como fazem a ararinha-azul ou a
araponga-da-amazônia.
Segundo o
IBGE, são 900 mil indígenas distribuídos por 305 povos, falam 274 línguas (já
foram mais de mil) e ocupam apenas 13% do território que, num passado
longínquo, dividiam inteiramente, entre flechadas e beijos, com centenas de
outros povos já extintos. Mais os povos em isolamento voluntário – pelo menos
28 grupos de existência confirmada pela Funai.
Ainda há,
portanto, no Brasil, milhares de seres humanos descendentes diretos dos povos
originários da terra onde os brasileiros vivem – povos que nos últimos 10 mil
anos conheceram no máximo a migração interna. Seus antepassados andavam por
aqui antes de Maomé e Cristo terem nascido, antes dos livros do Antigo
Testamento terem sido sequer sonhados, antes das pirâmides do Egito serem
erguidas para a glória dos faraós e ainda muito antes das tabuinhas cuneiformes
dos sumérios.
Nem
Huntington lhes negaria a condição de civilização, possivelmente até no plural.
São povos que dispensam a escrita, não precisam de história nem de literatura,
porque, muito antes de nós, aprenderam algo que nunca conhecemos e que talvez
nunca venhamos a descobrir: a arte de viver em natureza.
Tesouro
étnico. Os povos originários são a memória anterior à humanidade, tal qual a
conhecemos. Darcy Ribeiro disse que, no seu estudo de doutorado, fez amizade
com um cacique capaz de recitar mais de mil nomes de sua árvore genealógica.
Eles eram e são pela tradição, zelam por esse tesouro que é toda a existência
de um tempo sem tempo, em especial os povos ainda fechados em seu círculo fora
da história, como são os povos da floresta que ainda não tiveram contato com o
Ocidente, nesses últimos 10 mil anos – para o bem deles próprios.
Essa é a
imensurável riqueza confiada a nós, brasileiros (aqui incluídos os povos
indígenas mais ou menos aculturados), pelos acasos da história. Que outro país
tem a dádiva de conviver com suas matrizes culturais ainda vivas? Já
exterminamos (nós e os portugueses) quase a totalidade desses “outros” de que
nos jactamos, ao chamá-los nossos índios. Toda vez que nos cobram maior cuidado
com esses povos originários, patrimônio vivo de toda a humanidade, ainda somos
tentados a dar a resposta oferecida aos alemães, quando eles já estavam
reconstituindo grande parte da Floresta Negra. Como afirmação de soberania e
independência, dizíamos ter o direito de derrubar nossas matas, como eles
derrubaram as deles. Por certo, queremos nos igualar também aos
norte-americanos, que avançaram suas fronteiras agrícolas e de mineração até o
extermínio praticamente completo de seus povos indígenas, patrocinado pelo
Estado e com o apoio do Exército.
Já está
mais que na hora de pensarmos em frear nosso avanço e começar o árduo e custoso
trabalho de reconstruir o que estamos a ponto de perder por inteiro. Avançar
mais para criar mais miséria, em nome da produção de minério e de grãos (o
problema maior da fome nunca foi a falta de alimentos), é a prova cabal do
fracasso da civilização ocidental, que até aqui não soube desenvolver um
sistema econômico humanitário.
A conta
desse holocausto civilizatório não pode mais recair sobre os ombros dos povos
da floresta (sobre os ombros de mais nenhum povo), pois se estamos condenados a
desaparecer sem o avanço contínuo da economia, deveríamos ter a humildade de
aprender com quem sobreviveu, durante milênios, num equilíbrio homoestático com
a natureza.
Se sobre
genocídio já nada mais temos a aprender com alemães e estadunidenses, podemos
ao menos tomar lições sobre como se reconstrói. São hoje 900 mil índios, mas
dentro de vinte, trinta anos, poderão talvez ser 5 milhões. Será nossa maior
riqueza humanitária, ao lado das populações tradicionais (incluindo as
quilombolas), insuperável contribuição para a humanidade, a expressão real e
concreta daquilo que muitos gostam de chamar de tolerância, num tom ufanista
tal que poderíamos estendê-la até o Oriente Médio (suposto traço de caráter que
no passado chamávamos de democracia racial).
Estamos
chegando ao coração da selva, e lá não há trevas, mas nações indígenas
milenares levando vidas fora do nosso alcance. Em nome do que seja, menos ainda
da riqueza econômica, não podemos sacrificar as últimas reservas de uma
humanidade mais feliz do que a nossa. Se isso acontecer, passaremos à história
como coveiros da última nação indígena.
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