A Guerra de Israel em Gaza É uma Merda, mas É Realmente “Genocídio”?
Foto por Charles Davis.
“É de
partir o coração”, disse o presidente americano, Barack Obama, sobre a
destruição e a morte que seu governo ajudou a trazer para os moradores de Gaza.
“Realmente é de partir o coração”, disse o secretário de Estado americano, John
Kerry, sobre os quase 2 mil inocentes mortos pelo exército israelense com armas
fornecidas por Washington. “A perda de crianças é particularmente triste”,
disse Susan Rice, embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, sobre meninas e
meninos mortos (mais de 400) sendo empilhados num freezer de sorvete, porque os necrotérios de
Gaza estavam transbordando com cadáveres.
Há muitas
palavras sendo ditas para descrever a punição coletiva infringida a um povo sem
pátria – lugar cujos oficiais da ONU descreveram como uma “prisão a céu aberto” –, mas “de partir o coração” e
“triste” são talvez as mais inadequadas, já que sugerem uma certa
inevitabilidade trágica nos bombardeios de Israel, como se fossem a única
resposta apropriada para a qual só resta levantar os ombros e balançar a
cabeça. É aceitável lamentar o assassinato de inocentes, mas os seguidos
bombardeios a escolas da ONU cheias de civis aterrorizados é, de acordo com os
críticos mais respeitados, um erro estratégico – um caso de “boas intenções” abrindo caminho para o inferno na Terra
para os palestinos –, não um bom motivo para retirar o apoio ao projeto
colonial na Palestina e “deslegitimar” a ideia de um Estado explicitamente
fundamentado em supremacia étnica.
Claro, a
brutalidade de Israel é trágica e as mortes de bebês nunca são uma coisa boa,
mas isso é mais do que apenas uma triste loucura. “É um ultraje moral e um ato
criminoso”, de acordo com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Visto
como um aliado dos EUA e de Israel, Ban rotulou os ataques deliberados a escolas
da ONU em Gaza como “uma violação nojenta do direito internacional
humanitário”.
A Anistia
Internacional, de maneira similar, acusou os israelenses de cometer “crimes
contra a humanidade” ao alvejar hospitais, ambulâncias e as primeiras pessoas a
socorrer as vítimas, dizendo que o Estado deveria ser julgado pelo Tribunal
Penal Internacional . E a Human Rights Watch culpou esse país de “violações flagrantes das leis da guerra”, documentando
numerosos casos nos quais soldados israelenses saíram de seu caminho para
disparar contra civis em fuga. Nenhum oficial ocidental, entretanto, chamou a
atitude de se aterrorizar 1,8 milhão de pessoas em Gaza de um “ato de
terrorismo”, apesar de a ofensiva ter a intenção pública de trazer mudança
política e punir os palestinos por eleger os líderes errados. E mesmo que você
ouça essa palavra dos manifestantes, as principais organizações de direitos
humanos têm evitado chamar isso de “genocídio”.
Defensores
de Israel dirão que essa é a palavra errada a ser usada. Escrevendo para o Jewish
Daily Forward, a advogada de Nova Iorque Inna Vernikov foi até o dicionário Merriam-Webster, que define genocídio
como “matar deliberadamente pessoas que pertençam a um grupo racial, político
ou cultural”. Isso é inapropriado para Gaza, segundo ela, porque Israel não é o
culpado pela matança – os palestinos é que são. Sim, o “povo de Gaza está sob
cerco e têm seus direitos básicos à liberdade, movimento, educação e vida
negados”, mas Vernijov argumenta que isso é culpa deles: “Esses direitos são
negados pelo governo que eles mesmos elegeram”.
Mesmo que
“você me fez fazer isso” seja a reposta favorita de esposos e nações abusivos,
a empoeirada lei internacional – elaborada pelos poderes mais abusivos do mundo
– anuncia que civis inocentes não podem ser mortos pelo crime de votar errado,
mesmo isso já tendo acontecido em ocasiões anteriores, geralmente pelas mãos
das potências imperiais (os juristas de fato), como acontece com muitos outros
crimes tipificados pelo direito internacional.
O
jornalista Michael Wilner também acredita que é errado usar a palavra “G” para
o caso de Gaza. “Genocídio é o que acontece quando as pessoas são
discriminadas, encurraladas e levadas para o matadouro”, escreveu no Jerusalem Post, um jornal publicado em Israel,
país que derruba casas palestinas com tratores enquanto subsidia moradias para
colonos americanos de descendência judia, deslocou 80% da população original no
momento de sua fundação, prendeu milhões em guetos militarmente ocupados e
massacrou um em cada 1 mil moradores de Gaza. Wilner quer sugerir que o que
Israel tem feito não é tão ruim quanto outras coisas terríveis que acontecem pelo
mundo, mas que uma coisa ruim precisa ser a pior coisa do mundo para continuar
sendo uma coisa ruim.
Mapa via
Wikimedia.
“É
importante lembrar que você não precisa de milhões de cadáveres e um sistema de
extermínio industrial nazista para constituir genocídio sob a convenção
relevante”, escreveu Sam Husseini, do Institute for Public Accuracy, um
observador da mídia de Washington. A Convenção Sobre Prevenção e Punição pelo
Crime de Genocídio define
“genocídio” como infligir a um determinado grupo “condições de vida
calculadas para trazer sua destruição física como um todo ou em parte”. Como o
próprio título do tratado sugere, um genocídio não precisa estar completo – a
destruição não precisa ser total – para um comportamento genocida merecer o
rótulo. O que importa é a motivação, não a contagem de corpos.
“O conflito
pode ter muitas causas, mas o conflito genocida tem como base a identidade”, destacou o conselheiro especial da ONU em prevenção de
genocídio, obviamente um especialista no assunto. “Esses conflitos são
fomentados por discriminação” e por “discursos de ódio incitando à violência”,
completou.
Agora,
considere: Israel é um Estado que discrimina abertamente com base na identidade, negando a refugiados palestinos o
direito de visitar seus antigos vilarejos no que hoje é território israelense,
enquanto garante cidadania a qualquer um que tenha mãe judia. Israel é um
Estado onde o vice-presidente do parlamento pede abertamente pela substituição da população original de
Gaza por colonos judeus e no qual um dos principais jornais acabou de publicar
um artigo chamado “Quando o Genocídio é Admissível”. Esse é o tipo de lugar
onde o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, se sente confortável em chamar os
20% da população não judia – as pessoas expulsas – de “ameaça demográfica” com sua reprodução contínua
apresentando um desafio sério à supremacia étnica a oeste do Rio Jordão. Então
por que as pessoas têm medo de usar a palavra “genocídio”?
A porta-voz
da Anistia Internacional, Natalie Butz, disse que a linguagem que seu grupo
tipicamente usa é a de “crimes de guerra e crimes contra a humanidade”
cometidos pelos dois lados do conflito (com graus
bastante variados de sucesso). Ela frisou que “queremos que a situação seja
levada ao Tribunal Penal Internacional, a instituição com jurisdição sobre
crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio”, mas não respondeu
por que a Anistia não se refere às ações de Israel como “genocidas”. A Human
Rights Watch também relutou em explicar suas decisões linguísticas. Seu
escritório de assessoria de imprensa só afirmou que o grupo “condena Israel por
cometer crimes de guerra em Gaza, mas que não se refere a suas ações como
genocidas”, o que eu já sabia, já que tinha perguntado exatamente isso.
Sem querer
forçar muito a barra para que os grupos se explicassem, me voltei para Ali
Abunimah, editor do The
Electronic Intifada, um site de notícias dedicado à análise do conflito
entre israelenses e palestinos.
“A
definição popular tende a fazer as pessoas refutarem automaticamente alegações
de que qualquer coisa em menor escala que o Holocausto possa ser considerada
'genocídio'”, explicou Abunimah, autor de The Battle for Justice in Palestine.
Se reusando a usar a palavra “genocídio”, alguns podem estar simplesmente
tentando evitar parecer insensíveis, parecer que estão igualando a situação nos
territórios palestinos a um dos piores crimes que a humanidade já testemunhou,
o assassinato genocida de 6 milhões de judeus.
Claro,
alguns podem apontar que o massacre em Gaza não é o pior caso contemporâneo de
assassinato em massa. A guerra civil síria matou mais de 100 mil pessoas, com
atrocidades cometidas tanto pelo presidente Bashar al-Assad quanto pelos
rebeldes que lutam contra ele. Mas essa é uma guerra civil para preservar um
regime, não para eliminar minorias étnicas. É horrível, mas não é genocídio – é
uma luta por poder, não uma luta para extinguir uma etnia – e, de maneira
crucial, não falta gente condenando o que está acontecendo por lá.
Não é
preciso coragem no Ocidente para condenar os crimes do governo sírio ou do EI
(Estado Islâmico). Israel, por outro lado, é apoiado por uma superpotência que
fornece um subsídio de US$ 3 bilhões por ano para a compra de armas usadas em
crimes de guerra. Incluindo armas nucleares. Como o jornalista Max Blumenthal
argumenta, Israel não é Davi, e sim Golias – e no momento vem agindo com
impunidade.
Não são só
as milhares de pessoas (palestinos) que Israel vem matando nos últimos anos em
ataques regulares, hipertrofiando um punhado de mortes por foguetes do Hamas. O
país vem, há décadas, realizando o que o historiador israelense Ilan Pappé
descreve como “genocídio incremental”, que desde 1948 remove palestinos de
suas terras, destruindo suas casas e forçando suas famílias a viver em campos
de refugiados, por nenhuma outra razão a não ser terem os palestinos nascido
das mães erradas.
Mapa via Wikimedia.
“As mortes
vêm acontecendo há muito tempo, assim como as péssimas condições de vida e as
expulsões [que acontecem desde 1947], quando 700 ou mais vilarejos da Palestina
foram destruídos, e isso continua até hoje”, mostrou Michael Ratner, presidente
da União Americana pelas Liberdades Civis, numa entrevista à Real News. “É importante chamar isso pelo que
é.” E o nome, ele disse, é “genocídio”.
É nesse
tipo de situação em que as nações supostamente civilizadas – aquelas que fazem
guerra por petróleo, não para fazer limpezas étnicas – devem invocar sua
“responsabilidade de proteger”. Na Líbia, isso significou jogar bombas da
segurança do céu e deixar o país numa situação pior que antes. Ninguém quer isso.
Israel não deve ser bombardeada. Mas o país deve ser julgado por ser um Estado
de Apartheid que vem realizando um genocídio lento. Os governantes ocidentais
podem parar de bloquear ações legais destinadas a trazer consequências para o
comportamento genocida e cessar a entrega de armas a Israel para massacrar
palestinos.
No mínimo,
os líderes israelenses devem temer viajar ao exterior, como um Bashar al-Assad
ou um Dick Cheney, porque em qualquer aeroporto, a qualquer hora, alguém pode
algemá-los e carregá-los para um julgamento por crimes de guerra. Mas é melhor
não esperar que o establishment aja. Afinal de contas, está claro que os EUA, o
país na melhor posição para proteger as pessoas bombardeadas por seu
país-cliente, não tem intenção de proteger nenhum palestino. Cabe ao povo,
então, tornar Israel um país pária, o que pode ser alcançado, em parte,
chamando seu comportamento pelo que realmente é. Há muitas guerras e mal no
mundo, mas expulsar as pessoas de suas casas e bombardeá-las pelo que elas são
(pertenceram a outra etnia) tem um nome específico: “genocídio”.
Tradução:
Marina Schnoor
Fonte: http://www.vice.com/pt_br/read/a-guerra-de-israel-em-gaza-e-uma-merda-mas-e-realmente-genocidio
Nenhum comentário:
Postar um comentário