O massacre
visto por dentro
Dois
médicos noruegueses em Gaza descrevem, atônitos, guerra que visa especialmente
residências e hospitais e faz população acreditar que já “não há nada a perder”
Os números
são escritos em tinta na palma de sua mão, como se fosse uma um aluno anotando
uma cola para uma prova: 1.035 mortos, 6.233 feridos, em duas horas na
segunda-feira. A cada dia, ele apaga as cifras e atualiza.
Nesta
semana, o professor Mads Gilbert deixou o Hospital de Shifa, na Faixa de Gaza,
para breve férias em sua terra natal, Noruega, depois de duas semanas
consecutivas tratando as vítimas da guerra. Seu colega e compratriota, o
professor Erik Fosse, deveria substituir Gilbert em Gaza, mas até o meio da
semana Israel ainda o impedia. Fosse passou, também, a primeira semana da
Operação Borda de Proteção em Shifa, e queria voltar.
Gilbert e
Fosse trabalharam em Shifa durante a Operação Chumbo Fundido, em 2008-09, e
publicaram na sequência o livro Olhos em
Gaza, um best-seller internacional. Agora, eles afirmam que, em termos de
dano causado à população civil, e principalmente às crianças, a atual guerra na
Faixa de Gaza é ainda mais angustiante do que a anterior.
Ambos estão
em seus sessenta anos. Eram admiradores de Israel em sua juventude, mas na
primeira guerra do Líbano em 1982 – em que se alistaram para ajudar a tratar os
palestinos feridos – suas perspectivas e vidas mudaram para sempre. “Foi então
que vi a máquina de guerra israelense pela primeira vez”, Gilbert lembra.
Fosse
dirige uma organização chamda NORWAC (Comitê da Ajuda Norueguesa), que presta
assistência médica aos palestinos, e é financiada pelo governo norueguês.
Gilbert (que é voluntário independente) e Fosse têm, ambos, dedicado boa parte
de suas vidas ajudando os palestinos, o que tornou Gaza uma segunda casa para
eles. Na segunda-feira à tarde, encontramos Fosse, um cirurgião cardíaco, em
Herzlia, retornando para Gaza, depois de suas férias na Noruega. E conhecemos
Gilbert, um anestesista, enquanto saía da passagem da fronteira de Erez a
caminho de casa. As imagens descritas pelos dois deve pesar muito na
consciência de cada ser humano decente.
“Pensei que
a a Operação Chumbo Fundido seria a experiência mais terrível da minha vida”,
disse Gilbert, “até que cheguei em Gaza há duas semanas. Era ainda mais
chocante. Os dados revelam que há 4,2 vítimas palestinas por hora… Mais de um
quarto dos mortos são crianças; mais da metade são mulheres e crianças. As
forças armadas de Israel admitem que 70% são civis; a ONU diz que 80% são;
mas pelo que vi no Shifa, mais de 90% são civis. Isso significa que estamos
falando de um massacre da população civil”.
“Shujaiyeh
foi um verdadeiro massacre”, continua ele. “Na Operação Chumbo Fundido, eu não
vi esse tipo de ataque em edifícios residenciais; naquela época, os prédios
públicos foram atacados. A brutalidade, o dano intencional a civis e a
destruição são mais angustiantes agora do que na Operação Chumbo Fundido. Não
me impressiona o o fato de que as pessoas recebam um aviso de 80 segundos
para evacuar suas casa. Isso é desumano. A visão de Shujaiyeh é mais terrível
do que qualquer coisa que vimos em Chumbo Fundido”.
“Dê uma
olhada em Shujaiyeh – parece Hiroshima. Eu nunca vou me acostumar com a visão
de uma criança ferida, quando não temos à disposição meios adequados para
tratar deles. Usamos anestesia local, devido à falta de remédios, e não há
drogas suficientes nem para isso”.
Gilbert,
que leciona na Universidade do Norte da Noruega, também está furioso com o que
vê como dano intencional do exército aos hospitais. Nada sobrou do hospital de
reabilitação Al-Wafa; o hospital infantil Mohammed al-Dura em Beit Hanun foi
bombardeado pelo exército, e uma criança de dois anos e meio, internada na UTI,
foi morta. Quatro pessoas morreram no Hospital Al-Aqsa. Gilbert tinha visitado
o hospital infantil e testemunhou a cena com seus próprio olhos. Nove
ambulâncias foram atacadas; os médicos foram mortos e feridos. Na opinião de
Gilbert, estes incidentes constituem crimes de guerra.
O médico
ficou particularmente impressionado pela determinação e comportamento dos
residentes, primeiramente aqueles das equipes médicas locais. Em Shipa, nenhum
dos funcionários recebeu salário por três mêses; nos oito meses anteriores,
apenas receberam metade dele. Mesmo os que tiveram suas casas destruídas
permaneceram trabalhando. Sua devoção à profissão sob tais condições
deixaram-no atônito.
No que diz
respeito à afirmação de que os líderes de Hamas estão escondidos em Shifa, os
dois noruegueses dizem não terem visto um único homem armado ou qualquer chefe
da organização; alguns ministro do Hamas foram visitar os feridos.
Gilbert diz
que, também na Operação Chumbo Fundido, o exército de Israel tentou assustar o
serviço médico dizendo que os militantes armados estavam escondidos no
hospital. Mas a última pessoa com armas que os noruegueses viram em Shifa foi
um médico israelense, durante a primeira intifada, anos atrás. Gilbert diz que
avisou o homem sobre a lei internacional, que proíbe levar armas a hospitais.
Da mesma
maneira, ele recusa as declarações de que o Hamas está usando a população civil
de Gaza como escudo humano, e adiciona: “Onde a resistência clandestina ao
nazismo se escondia, na Holanda e na França? E onde escondia suas armas?”
“Eu não
apoio o Hamas”, diz Gilbert. “Eu apoio palestinos, e também seu direito de
escolher os líderes errados. E quem escolheu [o primeiro-ministro israelense]
Neanyahu e [o ministro de Relações Exeteriores, de extrema-direita,] Lieberman?
Eles [os palestinos] têm o direito de cometer erros. Visito Gaza há 17
anos. Quanto mais você a bombeia, mais o apoio pela resistência cresce. Sinto
que a tentativa de retratar Hamas como um Boko Haram é
ridícula. Boko Haram é o exército de Israel, que está violando a lei
internacional. Como seus comandantes podem estar orgulhosos de matar civis?
“A História
vai julgá-los e acredito que o exército de Israel não vai sair disso bem, dados
os fatos. Eu faço um chamado aos israelenes: ergam-se. Mostrem coragem. Israel
etá se movendo na direção de ser pior que a África do Sul — e isso seria uma
forma vergonhosa de deixar o palco da história.”
Fosse é
mais comedido, provavelmente porque trabalhou apenas até a invasão por terra em
Gaza começar. Em Shifa, ele conduziu cerca de dez operações por dia. Elogia a
especialidade dos médicos de Gaza, com quem trabalhou.
Ele vê sua
missão como uma extensão para além da sala de cirurgia, ao levantar um grito de
alarme para o mundo, depois de Gaza ser esvaziada de qualquer presença
internacional por Israel. Ele afirma que a maioria dos feridos que tratou foram
atingidos por mísseis guiados de precisão. Está certo, portanto, de que o maior
número de ataques a civis e crianças foi intencional.
Em seu
livro, os noruegueses reproduziram uma foto dos atiradores do
exército de Israel, vestindo camisetas com as legendas: “Menores — mais duros”
e “Uma bala — dois mortos”. Desta vez, são os mísseis inteligentes que estão
matando crianças. Mas na opinião de Fosse, o cerco de Israel a Gaza é ainda
mais sério para seus residentes que a guerra. E é esse o motivo de o Hamas
estar mais agressivo agora.
“Há sete
anos, a sociedade inteira está se desmoronando. Não há comércio, não há
exportação nem saída. A única ocupação que permite acumular dinheiro é o
contrabando, e isso destrói a sociedade. Destrói Gaza como uma sociedade
normal. O cerco criou um reduzido grupo de pessoas que enriquecem
contrabandeando. Todas as outras são pobres. Isso mina a estrutura da
sociedade, e é o maior problema de Gaza.
“Fui
lembrado de minhas conversas com cirurgiões palestinos da minha idade. Por
anos, eles viveram em uma Gaza aberta, que tinha conexões excelentes com os
médicos israelenses. Sempre sonharam em voltar a isso. Agora, esses mesmos
médicos se reúnem em volta da televisão e ficam felizes quando foguetes caem no
país vizinho. Eu digo a eles: mas Israel vai reagir. E eles dizem: não nos
importamos mais. Vamos morrer de qualquer maneira. É melhor morrer em um
bombardeio.
“Eles
perderam toda a esperança. É chocante ver estas pessoas perdendo seus filhos e
não se importarem mais. Israel está perdendo soldados, agora, para preservar
uma situação a que o mundo inteiro se opõe. Isso é um crime contra uma
população civil imensa”, Fosse acrescenta.
“Vocês
roubaram seu futuro e eles estão em desespero. O Hamas não tem muito apoio, mas
há um imenso apoio ao sentimento de que não há mais nada a perder. E, do
outro lado, está a sociedade israelense, que não se importa. É muito triste.
Vocês, que passaram pelo Holocausto, tornaram-se racistas. Em minha opinião,
isso é uma tragédia. Por que estão fazendo isso? Estão ultrapassando todos os
limite éticos — e, no fim, isso também vai destruir sua própria sociedade.”
Haaretz |
Tradução: Cauê Ameni e Gabriela Leite
Fonte: http://outraspalavras.net/
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