Estado Não há culpa coletiva na Faixa de Gaza.
Alguns
defensores de Israel flertam com o barbarismo ao tentar justificar a morte de
civis na Faixa de Gaza
Said Khatib
/ AFP
No domingo
3, em Rafah, na Faixa de Gaza, garota chora durante o funeral de nove membros
da família al-Ghul, mortos em um ataque israelense
Vamos
começar refletindo sobre as duas frases abaixo.
"Quando
você faz parte de um processo eleitoral que (elege) uma organização terrorista
que proclama em palavras e ações que seu principal objetivo é destruir o seu
país vizinho e não construir escolas, comércio ou postos de trabalho, você é
cúmplice e não uma vítima civil."
"O
povo é quem escolhe o governo por vontade própria, uma escolha que decorre de
seu acordo com suas políticas. (...) O povo é que financia os ataques contra
nós (...) por meio de seus candidatos eleitos. (...) É por isso que o povo não
é inocente por todos os crimes cometidos."
O primeiro
comentário é de David-Seth Kirshner, presidente do Conselho de Rabinos de
Nova York, que na semana procurou justificar os ataques das Forças Armadas de
Israel contra civis palestinos na Faixa de Gaza. O segundo é de Osama bin
Laden.
É altamente
perturbador quando um líder religioso legítimo e conceituado, caso de Kirshner,
passa a usar o mesmo tipo de retórica do maior terrorista da história. Esse
tipo de argumento, no entanto, tem surgido entre os defensores de Israel.
Ele aparece à medida que o mundo entende como falaciosa a tese do "direito
à defesa", uma contradição em termos tendo em vista o cerco terrestre,
aéreo e naval mantido por Israel e pelo Egito à Faixa de Gaza nos últimos nove
anos. Surge, também, como resposta à pressão internacional sobre Israel, por
causa do grande número de vítimas civis deixado pela Operação Protective Edge.
Há inúmeras
tentativas de explicar, do lado israelense, a quantidade de vítimas civis.
O jornal The Times of Israel concluiu em reportagem que os números
são inflados apenas como propaganda do Hamas. O editorial do jornal seguiu
linha semelhante, mas questionou por que a operação Protective Edge tem
tanta cobertura e o confronto na Síria ficou de lado. Outras tentativas de
explicar a morte dos civis são bem mais desconcertantes.
É o caso
dos que defendem que os palestinos merecem morrer porque o Hamas foi eleito em
2006. Além da fala do rabino nova-iorquino, dois textos são emblemáticos nesse
sentido. No jornal The Washington Post, o colunista Charles Krauthammer
direcionou suas críticas não ao Hamas, mas a todos os "palestinos de
Gaza": "Eles elegeram o Hamas. Então, em vez de construir um Estado
com suas instituições políticas e econômicas de atendimento, passaram a maior
parte de uma década transformando Gaza em uma base militar em massa, repleto de
armas terroristas, para fazer a guerra incessante em Israel". No Wall
Street Journal, Thane Rosenbaum, diretor do Fórum de Direito, Cultura e
Sociedade na Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, foi mais
explícito. "O povo de Gaza elegeu esmagadoramente o Hamas (...). O que
eles acharam que ia acontecer? Em algum nível básico, você perde seu
direito de ser chamado de civil, quando elege livremente os membros de uma
organização terrorista como estadistas."
Além da
perversidade dessa "teoria", análoga à usada por Bin Laden para
justificar a morte de civis no 11 de Setembro, ela resulta de uma generosa dose
de ignorância histórica, política, matemática e jurídica.
Como o
Hamas chegou ao poder
A sempre
citada eleição de 2006 foi realizada em janeiro daquele ano, tanto na Faixa de
Gaza quanto na Cisjordânia. Era um pleito parlamentar e foi disputado por
14 partidos. O Hamas venceu o pleito, mas a maioria obtida pelo grupo
deveu-se a uma questão matemática: o sistema eleitoral vigente, do tipo winner
takes all (o vencedor leva tudo). Não houve vitória "esmagadora"
– o Hamas obteve 44,45% dos votos e o Fatah, 41,43%. Os dois grupos,
eventualmente, se envolveram em uma guerra civil encerrada com o Fatah
controlando a Cisjordânia e o Hamas, a Faixa de Gaza.
Os aspectos
históricos e políticos são ainda mais importantes, pois demonstram que
a vitória do Hamas não pode ser explicada por um suposto desejo
dos palestinos de colocar "uma organização terrorista no poder".
Em primeiro
lugar, é preciso considerar que o Hamas é parte integrante e indissociável da
sociedade palestina. O grupo surgiu em 1987, em meio à primeira Intifada contra
Israel, como resultado do fortalecimento da oposição religiosa à secular
Organização da Libertação da Palestina (OLP). O próprio governo de Israel
fomentou grupos religiosos que deram origem ao Hamas, como forma de se contrapor
à OLP, então comandada por Yasser Arafat. Essa história está, entre outros
lugares, na página 45 do livro Hamas, de Beverley Milton-Edwards
e Stephen Farrell. Como ocorreu em outros lugares do Oriente Médio nos anos
1970 e 1980, o islã político, a ideologia do Hamas, passou a ser um
meio para os palestinos expressarem seu descontentamento com a ocupação
israelense, e é assim até hoje. A partir daí, o Hamas notabilizou-se por
ataques terroristas contra civis israelenses, mas a pressão militar de Israel e
a queda da popularidade desse tipo de ação entre os palestinos fez o grupo
iniciar uma guinada à política. O ponto culminante dessa mudança foi a eleição
de 2006.
Apesar do
viés político-religioso do Hamas, foi a questão política que prevaleceu na
vitória. No ensaio The Hamas Agenda: How has it changed?, publicado pelo Middle
East Policy Council, o pesquisador Baudouin Long afirma que a vitória não
se deu por causa do islamismo do Hamas, mas foi resultado de uma campanha que
"tirou vantagem do fracasso da Autoridade Palestina de estabelecer um
Estado independente". Como ocorreu em Israel, onde o fracasso do
processo de paz deu poder à direita contrária ao Estado palestino, entre os
palestinos houve um fortalecimento político do Hamas.
A vitória
do Hamas, continua Long, foi também fruto "da corrupção e da má governança
do Fatah". Uma análise do noticiário de 2006 revela isso de forma
cristalina. Um dia antes da eleição, o Guardian mostrava a indignação dos
palestinos com a corrupção e a incompetência do Fatah. No dia seguinte ao
pleito, a Associated Press afirmava que o "Hamas capitalizou o
descontentamento generalizado com anos de corrupção e ineficácia do Fatah.
Grande parte de sua campanha foi focada em questões internas palestinas,
ao diminuir a importância do conflito com Israel".
Parece
claro, assim, que os palestinos não elegeram o Hamas porque o grupo defende em
seu documento fundador o antissemitismo e a destruição de Israel, mas porque o
Hamas era a alternativa "menos pior" à precariedade em que viviam.
Acima de
tudo isso está a questão humana e civilizacional das regras da guerra. A
diferenciação entre combatentes e não combatentes em um confronto militar
data da Declaração de São Petersburgo de 1868. Hoje, ela
baliza as regulações da Convenção de Haia e é a primeira das 161 regras da
Lei Humanitária Internacional. Esse princípio existe para tentar manter ao
menos em níveis mínimos os contornos civilizacionais que regem o mundo mesmo em
momentos de crise.
Como
afirmou o articulista Ramesh Ponnuru, um dos que manifestaram preocupação
com a tese da "culpa coletiva" palestina, as regras da
guerra "são uma conquista civilizacional que vale a pena
defender". Hoje, Israel ocupa a Cisjordânia de forma ilegal e
transformou a Faixa de Gaza em uma prisão a céu aberto. No atual conflito, já
destruiu 4 mil residências e matou 4 mil pessoas, 300 delas crianças. A bússola
moral do país está apontando para o lugar errado. Os defensores de Israel
precisam entender isso e ajudar o país a corrigir seu rumo. Justificar o injustificável
não é o melhor caminho.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/
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