quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Especismo e a questão da prioridade no socorro – por Luciano Carlos Cunha


Especismo e a questão da prioridade no socorro
A maioria das pessoas acredita que o fato de alguém pertencer à espécie humana deveria intitular automaticamente esse alguém a ter prioridade no socorro. Abaixo, ofereço algumas razões para se pensar que essa posição é injusta. Contudo, essas razões acabam por mostrar que seria injusto basear-se não apenas no critério “pertencer à espécie humana”, e sim, “pertencer à espécie x” (ou seja, qualquer uma delas).

Assim sendo, a pergunta que vou abordar é esta:

“Por que eu deveria rejeitar o pertencimento à determinada espécie enquanto critério para saber a quem devo dar prioridade no socorro?”

Porque aquilo que é relevante para se estabelecer de quem deve ser a prioridade de socorro é independente da espécie desse alguém. Para entender, imagine que nós naufragamos em uma ilha, e que todos os náufragos são humanos. Imagine que temos de determinar de quem deve ser a prioridade de socorro (ou seja, quem deve ser socorrido antes do que todos os outros). Imagine que sejam sugeridos os seguintes critérios: (1) ver quais indivíduos se encontram, comparativamente aos outros, na pior situação; (2) ver quais indivíduos são, comparativamente aos outros, mais vulneráveis; (3) ver se há algum indivíduo que, se receber prioridade, terá chances de salvar os outros (um médico, por exemplo). Compare agora com esse critério: (4) deve-se dar prioridade àqueles que possuem o maior número de letras no nome.

Os três primeiros critérios baseiam-se em características moralmente relevantes para o que está em jogo. O quarto critério não. Conseguimos distinguir o que é relevante e o que não é com relação à prioridade quando perguntamos: “por que alguém precisaria de prioridade no socorro?”. As respostas tem a ver com estar em uma situação pior do que a dos outros, ser mais vulnerável que os outros, ter maior chance de salvar o maior número de indivíduos. A lista fica em aberta para haver alguma outra consideração relevante, mas, o número de letras do nome de alguém não tem absolutamente conexão alguma com alguém precisar de prioridade no socorro. Dessa maneira, conseguimos distinguir os critérios que baseiam-se em características relevantes e os que baseiam-se em características irrelevantes.

E, quanto ao critério “pertencimento a determinada espécie”? Diretamente, é irrelevante, pois o fato de, por exemplo, alguém estar numa pior situação comparativamente aos outros, ou ser mais vulnerável que os outros ou ser capaz de salvar os outros, não necessariamente coincide com “pertencer à espécie x”. É verdade, esses fatores podem coincidir com a espécie em alguns casos (então, saber a espécie de alguém seria indiretamente relevante para se saber a prioridade): na maioria das vezes, são os animais não humanos que estão numa situação pior do que todos os outros indivíduos; são animais de determinadas espécies que são mais vulneráveis; são animais de determinadas espécies que tem maiores chances de salvar os outros, etc. Mas, a razão para lhes dar prioridade, em casos assim, não é porque pertencem às espécies que pertencem, mas sim, porque estão na pior situação, são mais vulneráveis, tem maiores chances de ajudar os outros, etc.

Assim sendo, para evitar o especismo, é melhor sempre nos basearmos nas características diretamente relevantes (no caso, estar na pior situação, ser mais vulnerável ou ter maiores chances de salvar os outros, por exemplo), pois pode acontecer desses critérios não coincidirem sempre, e então, cometermos uma injustiça (por exemplo, dar prioridade a um membro de determinada espécie porque geralmente os membros dessa espécie tem maiores chances de salvar os outros, quando nesse caso, ele não próprio não tem, e nem se encontra na pior situação e nem é o mais vulnerável, por exemplo).

A maioria das pessoas defende que a prioridade deve ser sempre do humano, independentemente de ele estar prior do que todos outros, de ser mais vulnerável, de ser capaz de salvar os outros, etc. Esse critério é tão injusto, por ser tão arbitrário quanto o número de letras no nome.

Uma questão um pouco diferente, mas que tem relação com esta, é sobre quais seriam os critérios relevantes para estabelecer a justiça na prioridade não de um indivíduo frente a outros, mas sim, de uma situação que apresenta vários indivíduos frente à outra situação que também apresenta vários indivíduos. Que critérios seriam justos de se adotar? A resposta para essa questão é importante, por exemplo, para saber que causas deveríamos apoiar prioritariamente. Este será o tema de uma postagem futura.

Fonte: http://www.anda.jor.br/

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