Especismo e a questão da prioridade no socorro
A maioria
das pessoas acredita que o fato de alguém pertencer à espécie humana deveria
intitular automaticamente esse alguém a ter prioridade no socorro. Abaixo,
ofereço algumas razões para se pensar que essa posição é injusta. Contudo,
essas razões acabam por mostrar que seria injusto basear-se não apenas no
critério “pertencer à espécie humana”, e sim, “pertencer à espécie x” (ou seja,
qualquer uma delas).
Assim
sendo, a pergunta que vou abordar é esta:
“Por que eu
deveria rejeitar o pertencimento à determinada espécie enquanto critério para
saber a quem devo dar prioridade no socorro?”
Porque
aquilo que é relevante para se estabelecer de quem deve ser a prioridade de
socorro é independente da espécie desse alguém. Para entender, imagine que nós
naufragamos em uma ilha, e que todos os náufragos são humanos. Imagine que
temos de determinar de quem deve ser a prioridade de socorro (ou seja, quem
deve ser socorrido antes do que todos os outros). Imagine que sejam sugeridos
os seguintes critérios: (1) ver quais indivíduos se encontram, comparativamente
aos outros, na pior situação; (2) ver quais indivíduos são, comparativamente
aos outros, mais vulneráveis; (3) ver se há algum indivíduo que, se receber
prioridade, terá chances de salvar os outros (um médico, por exemplo). Compare
agora com esse critério: (4) deve-se dar prioridade àqueles que possuem o maior
número de letras no nome.
Os três
primeiros critérios baseiam-se em características moralmente relevantes para o
que está em jogo. O quarto critério não. Conseguimos distinguir o que é
relevante e o que não é com relação à prioridade quando perguntamos: “por que
alguém precisaria de prioridade no socorro?”. As respostas tem a ver com estar
em uma situação pior do que a dos outros, ser mais vulnerável que os outros,
ter maior chance de salvar o maior número de indivíduos. A lista fica em aberta
para haver alguma outra consideração relevante, mas, o número de letras do nome
de alguém não tem absolutamente conexão alguma com alguém precisar de
prioridade no socorro. Dessa maneira, conseguimos distinguir os critérios que
baseiam-se em características relevantes e os que baseiam-se em características
irrelevantes.
E, quanto
ao critério “pertencimento a determinada espécie”? Diretamente, é irrelevante,
pois o fato de, por exemplo, alguém estar numa pior situação comparativamente
aos outros, ou ser mais vulnerável que os outros ou ser capaz de salvar os
outros, não necessariamente coincide com “pertencer à espécie x”. É verdade,
esses fatores podem coincidir com a espécie em alguns casos (então, saber a
espécie de alguém seria indiretamente relevante para se saber a prioridade): na
maioria das vezes, são os animais não humanos que estão numa situação pior do
que todos os outros indivíduos; são animais de determinadas espécies que são
mais vulneráveis; são animais de determinadas espécies que tem maiores chances
de salvar os outros, etc. Mas, a razão para lhes dar prioridade, em casos
assim, não é porque pertencem às espécies que pertencem, mas sim, porque estão
na pior situação, são mais vulneráveis, tem maiores chances de ajudar os
outros, etc.
Assim
sendo, para evitar o especismo, é melhor sempre nos basearmos nas
características diretamente relevantes (no caso, estar na pior situação, ser
mais vulnerável ou ter maiores chances de salvar os outros, por exemplo), pois
pode acontecer desses critérios não coincidirem sempre, e então, cometermos uma
injustiça (por exemplo, dar prioridade a um membro de determinada espécie porque
geralmente os membros dessa espécie tem maiores chances de salvar os outros,
quando nesse caso, ele não próprio não tem, e nem se encontra na pior situação
e nem é o mais vulnerável, por exemplo).
A maioria
das pessoas defende que a prioridade deve ser sempre do humano,
independentemente de ele estar prior do que todos outros, de ser mais
vulnerável, de ser capaz de salvar os outros, etc. Esse critério é tão injusto,
por ser tão arbitrário quanto o número de letras no nome.
Uma questão
um pouco diferente, mas que tem relação com esta, é sobre quais seriam os
critérios relevantes para estabelecer a justiça na prioridade não de um
indivíduo frente a outros, mas sim, de uma situação que apresenta vários
indivíduos frente à outra situação que também apresenta vários indivíduos. Que
critérios seriam justos de se adotar? A resposta para essa questão é
importante, por exemplo, para saber que causas deveríamos apoiar
prioritariamente. Este será o tema de uma postagem futura.
Fonte: http://www.anda.jor.br/
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