Pobres e invisíveis, no coração do Império
Desta vez,
o fogo vem da invisibilidade. Nossa sociedade espera que a polícia mantenha
longe dos nossos olhos e mentes os afro-descendentes desempregados e com pouca
educação formal. Quando, de repente, sobem ao palco, iluminado pelos flashes e
pela centelha dos coquetéis molotov, simulamos surpresa.
A última
causa da agitação em Ferguson, no estado de Missouri, meio-oeste dos EUA,
foi a morte do garoto de 18 anos de idade, Michael Brown. Segundo uma
testemunha, ele foi parado por um policial branco por andar na rua, e não na
calçada. O oficial, Darren Wilson, atirou em Brown pelo menos seis vezes. Duas
das balas atingiram sua cabeça. Aí temos novamente a narrativa familiar: outro
homem negro desarmado, assassinado injustamente. Brown, portanto, junta-se a
uma lista longa e triste, que parece não ter fim.
Este enredo
é indiscutível. Para sustentar que etnia não é um fator importante nestes
encontros fatais, seria preciso citar exemplos de jovens brancos e desarmados
sendo mortos pela polícia ou por autoproclamados vigilantes. Nomes e datas, por
favor.
Mas a
violência em Ferguson evoca uma narrativa mais profunda e fundamental sobre o
que afro-americanos têm feito, e o que tem sido feito a eles, nas décadas após
as manifestações urbanas dos anos 1960 — o fogo anterior.
Tentado a
concluir que nada mudou nos Estados Unidos? Por favor, repare que o
comandante da patrulha de rodovias de Missouri, escolhido para disciplinar a
ação da polícia local, é negro. O procurador geral que interrompeu suas
férias na ilha de Martha’s Vineyard para ordenar uma investigação no
Departamento de Justiça e uma terceira autópsia é negro. E, é claro, o
presidente e comandante-em-chefe — que também interrompeu férias para discursar
sobre a crise em Ferguson — é negro.
Note também
que essa evidência inegável de progresso na questão de raça — ela teria sido
inimaginável quando o Harlem explodiu, em 1964, após a polícia ter atirado em
um garoto de 15 anos — não faz diferença aparente para os jovem que se agitam
pelas ruas de Ferguson.
E por que
não? Porque os enormes ganhos obtidos por alguns afro-descendentes não apenas
deixaram outros para trás, mas fizeram sua situação mais desesperadora e sem
esperanças do que era, cinquenta anos atrás.
Quando a
inquietação em Ferguson acabar, prevejo que haverá uma enxurrada de jornalismo
ambicioso tentando afirmar o status da parte negra dos Estados Unidos. A
maior parte destas análises serão ignoradas porque irão contradizer o que os
norte-americanos veem todos os dias com seus próprios olhos.
Milhões de
afro-americanos tiraram proveito das oportunidades criadas pelo movimento de
direitos humanos para ascender à classe média — e, em alguns casos, mais
além, como mostram os exemplos do Presidente Obama e do Procurador-Geral Eric
Holder.
Mesmo
assim, milhões de outros norte-americanos negros não alcançaram a classe média.
Este grupo, atolado na pobreza e desocupação, descobre que os caminhos que
outros percorreram estão bloqueados. Eles vivem em bairros com escolas
decadentes, que não conseguem prepará-los para a economia de hoje. Empregos
seguros de operários, com salários altos, são algo do passado.
Tendências
raciais no policiamento significam que eles têm muito mais probabilidade de
serem detidos e presos por ofensas pequenas e não violentas, tais quais posse
de droga, do que os brancos, ao cometerem os mesmos crimes.
Cada vez
mais, este afro-descendentes que foram deixados para trás estão invisíveis.
Seus bairros ou sofrem especulação imobiliária — o que significa que eles não
podem mais morar lá — ou são simplesmente evitados pelo desenvolvimento. O que
acontece em bairros negros e pobres tem cada vez menos a ver com a vida diária
da classe média norte-americana, branca ou negra.
Ainda em
Ferguson, e em alguns outros cantos pelo país, milhões de jovens, homens e
mulheres, crescem sabendo que as cartas estão sendo postas contra eles. Por acaso
Michael Brown tinha um chip em seu ombro? Segundo seus amigos e família, não,
apesar da loja de conveniências sugerir o contrário. Seria compreensível se
tivesse? Será que ele teria se perguntado se crianças brancas, vivendo em
partes mais afluentes da cidade, são incomodadas frequentemente pela polícia
por perambular pela rua?
Brown não
tinha registro na polícia. Ele tinha se formado no ensino médio. Estava prestes
a entrar em uma faculdade técnica. Dado o local de onde ele vem, é difícil
chegar a algo muito melhor — e fácil fazer coisa bem pior.
Agora que
as ruas estão cheias de raiva incoerente — e a violência deve ser fortemente
condenada — podemos compreender a luta de Brown. Momentaneamente, pelo menos.
Depois que a fumaça passar, ficaremos cegos novamente.
Tradução: Gabriela Leite
Fonte: http://outraspalavras.net/
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