Licença para matar
Quando
Israel iniciou seus bombardeios maciços sobre Gaza, o presidente Obama
apressou-se em justificá-los.
“Israel tem o direito de se defender”, foi sua
frase, logo transformada num mantra, repetido fielmente pelos principais
estadistas do Ocidente.
Até mesmo
Catherine Ashton, chefe de Relações Exteriores da Europa Unida, que costuma ter
bom senso, embarcou na onda sem pensar duas vezes.
Claro,
houve quem se excedesse. O secretário de Estado John Kerry chegou a afirmar que
Israel se achava sitiado pelo Hamas. Uma curiosa troca de papéis na fábula do
lobo e do cordeiro.
No mundo de
“faz de conta”, que Kerry às vezes parece habitar, as forças do Hamas é que
estariam bloqueando Israel, proibindo as exportações e impedindo a importação
de vasta gama de produtos essenciais.
Além de
limitar entradas e saídas somente a quem bem entendesse. Como é exatamente o
contrário que acontece, Gaza vive sob um bloqueio de 7 anos, que destruiu
sua economia, seus empregos e a qualidade de vida do seu povo.
Como disse
o cardeal Martino, Gaza “cada vez mais parece um grande campo de concentração”.
Para Obama e os respeitáveis estadistas europeus, Gaza não tem o direito de se
defender desse devastador bloqueio.
Nenhum
deles contesta a licença para matar moradores de Gaza, a que Israel se
autoconcedeu. O máximo que eles criticam é o excessivo número de civis mortos.
Alguns chegam mesmo a condenar o uso desproporcional de forças pelo exército de
Israel.
Obama não
vai tão longe. Depois de reafirmar o direito de Israel se defender, ele diz
“esperar que Israel irá continuar agindo no processo de um modo que minimize
as vítimas civis”.
Ou seja: o
exército de Telavive já estaria agindo com moderação. Que continue assim, apela
o presidente estadunidense.
Para o
embaixador de Israel nos EUA, Ron Demer, até esta amena ponderação é
inaceitável. Quanto mais as menções europeias às altíssimas vítimas civis da
ofensiva israelense!
Demer
declarou, em reunião com 700 líderes judaico-americanos, que o exército de
Israel merecia o Prêmio Nobel da Paz por sua “inimaginável moderação” em Gaza.
Os
jornalistas norte-americanos gostaram tanto desta macabra piada que perguntaram
a opinião de Marie Harf, porta-voz do Departamento de Estado. Ela respondeu com
outra pérola.
Embora os
militares israelenses adotassem os mais cuidadosos padrões de segurança, talvez
pudessem fazer um pouquinho mais para proteger os civis...
O governo
Netanyahu garante que seus militares já estão fazendo o máximo para poupar
vidas civis. Antes de bombardear um edifício ou uma determinada área, o
exército de Israel avisa os moradores para que saiam de lá.
Esta medida
não tem dado muito certo por culpa exclusiva do Hamas, que obrigariam os civis
a
permanecerem. Seriam os chamados “escudos humanos” tantas vezes denunciados
pela propaganda israelense.
As coisas
não são bem assim. Em geral, o tempo que os moradores têm para escapar dos
bombardeios costuma ser curto; por volta de cinco minutos.
Aqueles que
conseguem escapar antes das bombas começarem a cair ainda assim não estão em
segurança.
Terão
extremas dificuldades para encontrar onde se refugiar. Todos os abrigos já
estão lotados com mais de 200 mil refugiados.
“Literalmente, não há lugar seguro para civis
(em Gaza)”, disse Jens Laerke, porta-voz do escritório das Nações Unidas para
Coordenação de Assuntos Humanitários, em entrevista recente, em Genebra.
Alguns dias
depois, provou-se que ele tinha razão. Atendendo a aviso do exército
israelense, milhares de palestinos refugiaram-se em escola da ONU, fugindo de
suas casas em vias de serem bombardeadas.
Mas os
bombardeios foram atingi-los ali, matando até crianças dormindo. Segundo as
leis internacionais, alvejar intencionalmente uma área civil é sempre crime de
guerra.
De qualquer
modo, avisar os moradores não transforma uma área civil num objetivo militar.
O exército
de Israel contesta, alega que o Hamas instala plataformas de lançamento mísseis
até junto a edifícios públicos.
Daí sua
justificação dos ataques a mesquitas, abrigos, campos de refugiados,
estádios, hospitais e escolas.
A
respeitável Human Rights Watch investigou essa questão. Em oito ataques aéreos
israelenses sobre edifícios onde se reúnem civis não descobriu nada que
comprovasse as acusações contra o Hamas.
Até agora
não apareceu nenhum testemunho independente atestando a existência de “escudos
humanos” ou mesmo de unidades militares do Hamas instaladas junto a prédios
públicos.
A
explicação do imenso número de civis mortos, casas destruídas e hospitais
bombardeados parece ser diferente.
Escreve Ian
Black no The Guardian, de 29 de julho: “O ataque à usina elétrica nesta
terça-feira irá provavelmente alimentar as especulações de que a infraestrutura
civil do enclave está sendo deliberadamente destruída na guerra contínua contra
o Hamas”.
Não dá para
aceitar que o exército israelense seja tão ineficiente a ponto de destruir “por
engano” tantos alvos civis.
Uma coisa
parece certa: especulações ou não, Israel está levando Gaza a uma situação
extrema.
Os
devastadores ataques por terra, mar e ar estão tornando insustentável a vida na
Faixa.
É
absolutamente inviável a sua recuperação econômica, mesmo a médio prazo. Na
semana passada, ONGs israelenses informaram que mais da metade dos 1,7 milhão
de habitantes de Gaza não dispõe de água, nem de saneamento básico.
“Efeitos colaterais” dos bombardeios. Os
hospitais estão parcialmente destruídos, há falta de remédios, de leitos.
Esgotos
vazam pelas ruas em consequência de rompimentos nas tubulações. Com o
bombardeio da única usina elétrica de Gaza, a população ficou sem energia.
A falta de
alimentos se acentua e teme-se para breve uma verdadeira crise humanitária. A
vida em Gaza praticamente parou.
Enquanto
essa tragédia adquire cores cada vez mais aterradoras, os canhões israelenses
prosseguem rugindo.
Obama,
Cameron, Hollande, Merkel, todas estas figuras impolutas lamentam, mas não
deixam de esclarecer: Israel tem direito de se defender.
Só que
Israel agora não está propriamente se defendendo. As toneladas de bombas
diariamente lançadas contra Gaza configuram um ataque impiedoso.
O alvo pode
ser o Hamas, mas as vítimas são civis (cerca de 80% dos mortos e feridos). Já
passou da hora do Ocidente retirar de Israel sua licença para matar inocentes.
Luiz Eça é
jornalista.
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