Será possível consumir sem alienar-se?
Novo
aplicativo permite desvendar, pelo código de barras, práticas antiéticas que
empresas tentam esconder. Ferramenta já é usada para boicotes — por exemplo,
contra produtos israelenses
Imagine-se
entrando em um supermercado para comprar uma garrafa de cerveja. Chegando lá,
além de escolher pelo preço ou pelo sabor, você também pode analisar. Rejeita a
marca que desrespeita os direitos dos trabalhadores. Evita aquela que faz
publicidade machista. Por fim, escolhe a que utiliza ingredientes orgânicos. Na
prateleira de cosméticos, pula os que ainda fazem testes em animais. Assusta-se
ao perceber que uma das marcas faz parte de multinacional de alimentos.
Finalmente, escolhe o creme hidratante da empresa que usa energia renovável.
Essa é a
ideia do aplicativo Buycott (um
trocadilho de “buy” — comprar, em inglês — com “boycott” — boicote). Criado
por Darcy Burner, uma ex-desenvolvedora norte-americana da Microsoft, o
programa para celulares ligados à internet baseia-se numa ferramenta do próprio
capitalismo: o código de barras… Estimula os usuários escaneá-los, com o
próprio telefone. E, ao identificar cada produto, associa seu fabricante a um
banco de dados que pode tornar-se cada vez mais
completo. Oferece todas as informações disponíveis: desde se o
produto utiliza químicos cancerígenos até se a empresa apoia o direito dos
transexuais.
O software
é participativo. As classificações dos produtos são chamadas de campanhas, e
podem ser criadas por qualquer usuário, dentro de algumas categorias. Algumas
delas: direitos dos animais, justiça econômica, meio ambiente, comida, direitos
humanos, direitos das mulheres. O usuário escolhe participar das campanhas que
quiser e, em seguida, pode passar a escolher um produto de acordo com seus
princípios pessoais.
No Brasil,
ainda é bastante difícil achar produtos que estejam em listas. Isso pode ser
rapidamente alterado. Depende apenas de que usuários da internet comecem a
registrar produtos e criar campanhas. Isso permitiria diversos tipos de
boicote: contra empresas que financiam certos políticos; contra uma
indústria que esteja na lista do trabalho escravo; ou alguma marca cujo
presidente mostrou-se contra os direitos das mulheres, por exemplo. Para
testar, escaneamos o código de barras de dois produtos. O primeiro foi uma
câmera Canon. Sobre ela, o aplicativo avisou: “você apoia esta
marca por responsabilidade ecológica”, e mostrou que a marca está na lista
positiva de “Energia limpa e renovável”. Acessamos seu site e vimos que realmente há uma campanha
de reciclagem de toners de suas impressoras, por exemplo.
Já no
momento em que fotografamos o código de barras de um cosmético da L’Oreal,
o Boycott advertiu:
“evite este produto”. Em seguida, explica: a marca faz parte do
conglomerado da Nestlé. Por isso, está na lista suja de uma campanha de boicote à
multinacional. O movimento adverte que o presidente da empresa, Peter
Brabeck-Latmathe, já afirmou que “o acesso à água não é um direito humano”, e
sua a indústria rouba a água potável de uma pequena comunidade no Paquistão,
deixando seus habitantes passarem sede.
A L’Oreal
ainda pertence a outra campanha: a “Long
live Palestine, boycott Israel” (“longa vida à Palestina, boicote Israel”).
Esta é uma das de mais sucesso nas últimas semanas, como afirma a página de trends do
aplicativo — já tem 230 mil seguidores. “A L’Oreal estabeleceu Israel como seu
centro comercial no Oriente Médio e aumentou o investimento e atividades
manufatureiras”, alerta. Se acreditar que deve haver um boicote econômico a
Israel, após o massacre na faixa de Gaza das últimas semanas, o consumidor pode
escolher não comprar a marca. Se fizesse isso sozinho, sua ação não seria nem
levemente sentida pela marca de cosméticos. Mas, em rede, essa atitude tende a
crescrer consideravelmente — e, talvez, pode chegar até a incomodar a gigante
Nestlé.
Por
séculos, o consumo tem sido uma das bases do processo de alienação capitalista.
Ao comprar algo, legitimamos e fortalecemos relações sociais que ignoramos. É
como se nossos valores éticos fossem irrelevantes ou impotentes, e devêssemos
consumir levando em conta apenas fatores superficiais: preço, aparência,
publicidade, suposta “qualidade” do produto. Agora, parece que a tecnologia
pode ser utilizada para atitudes distintas. Haverá consciência social
suficiente para que elas se disseminem?
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