No mundo de "Fahrenheit 451" as pessoas concluíram que a única forma de não ofender ninguém era simplesmente nunca mais ler ou escrever nada"
Morreu Ray Bradbury. Tinha 91 anos, quatro filhas, era viúvo de uma mulher com quem viveu por mais de cinco décadas, ganhou a vida fazendo o que amava e era muito bom no que fazia. É o tipo de morte que se lamenta mais por nós mesmos, que continuamos vivos, mas radicalmente empobrecidos, do que pelo morto. Ao partir, Bradbury não “perdeu” a vida. A vida é que o perdeu.
Exemplares de três de seus livros — O País de Outubro, As Crônicas Marcianas, Os Frutos Dourados do Sol — desmancharam-se em minhas mãos, de tão lidos, e isso há uns 20 anos. Confesso que, de meados da década de 90 para cá, a obra de Bradbury vem representando uma parcela cada vez menor de minha dieta literária.
Muda-se de idade, mudam-se os gostos: a ingenuidade poética que tanto encanta seus leitores mais fiéis a mim passou a soar, cada vez mais, como uma espécie de despropósito. Passei a valorizar e a buscar em minhas leituras uma prosa mais seca, um tipo de enredo mais enxuto, uma narrativa mais objetiva.
Mas. Há coisas que transcendem gostos e idiossincrasias. Há, por exemplo, As Crônicas Marcianas, a expressão definitiva de que a humanidade só se revela, em sua plenitude, no confronto com o desconhecido. E há Fahrenheit 451, talvez o mais profético dos livros, o único, em toda sua obra, que o próprio Bradbury considerava “de ficção científica”.
A maioria das pessoas provavelmente só conhece a sinopse do romance (uma sociedade onde a leitura é ilegal e onde os “bombeiros” incineram livros), ou o tedioso filme de François Truffaut, mas o romance é muito mais do que isso. É a prefiguração de uma sociedade dominada por espetáculos audiovisuais emasculados, onde perseguições policiais são transmitidas em tempo real para as telas de smartphones.
Isso, veja bem, num livro escrito em 1953.
Mas o verdadeiro toque de gênio — em termos de especulação social, que é a província específica do tipo de ficção científica (a dita “soft“) a que o livro pertence — está na explicação de como e por quê a palavra escrita passou a ser proscrita, como e por quê a sociedade decidiu transformar a leitura de livros em crime:
Vamos ver as minorias de nossa civilização, sim? Maior a população, mais minorias. Não ofenda os amantes de cães, os amantes de gatos, os médicos, os advogados, os comerciantes, os cozinheiros, os mórmons, os batistas, os unitaristas, os descendentes de chineses, suecos, italianos, alemães, do Brooklyn, da Irlanda, pessoas do Oregon e do México. As pessoas neste livro, nesta peça, neste seriado de TV não devem representar nenhum pintor, cartógrafo, mecânico de parte alguma. Quanto maior o seu mercado, Montag, menos você consegue administrar a controvérsia, lembre-se! Todas as menores, menores minorias, com seus umbigos a serem mantidos limpinhos. Autores, cheios de pensamentos malignos, tranquem suas máquinas de escrever. E eles trancaram. Revistas converteram-se em belas misturas de mandioca com baunilha. Livros, os malditos críticos esnobes, disseram, eram insossos. Não surpreende que tenham parado de vender, disseram os críticos. Mas o público, sabendo o que desejava, feliz (…) Então foi assim, Montag. Não veio de cima para baixo, do governo. Não houve decreto, declaração, censura, a princípio, não! Tecnologia, exploração das massas e pressão das minorias fizeram o truque, graças a Deus.A ressalva, aqui, é que as “minorias” a que Bradbury se refere são, além das “minorias” de sempre — excluídos, desprestigiados, etc. –, quaisquer grupos sociais organizados. Afinal, jornalistas, advogados, cozinheiros… são, em si, “minorias” dentro da sociedade. É tautológico: qualquer recorte do todo será, por definição, menor que o todo.
Mas enfim, não sei você, mas cada vez que leio a passagem do livro e olho para o país em que vivo, sinto um arrepio na espinha. Do mesmo modo que os judeus da Antiguidade concluíram que o único modo seguro de nunca pronunciar “o nome de Deus em vão” era jamais pronunciar o nome de Deus em hipótese alguma, e que os muçulmanos decidiram que a melhor forma de evitar idolatria era proibir de vez toda e qualquer forma de arte figurativa, no mundo de Fahrenheit 451 as pessoas concluíram que a única forma de não ofender ninguém era simplesmente nunca mais ler ou escrever nada.
Exagero? Pergunte aos jornalistas brasileiros que têm biografias não-autorizadas de figuras públicas prontas, na gaveta, mas que não encontram editoras dispostas a correr o risco jurídico de lançar o livro no mercado.
No mundo de hoje, queimar livros fisicamente nem é mais, de fato, uma prática eficaz como era, digamos, na época em que o apóstolo Paulo instigou uma grande fogueira de obras pagãs na cidade de Éfeso, causando um prejuízo de cinquenta mil peças de prata (1.666 vezes mais do que Judas recebeu por Jesus, eis aí um número cabalístico). Queima-se um exemplar aqui, outro ali, e daí? Milhares ou milhões de outros ainda existem, sem falar nas cópias digitais.
O que me traz ao título da postagem, uma citação deste artigo de Ray Bradbury, a respeito da pressão que vinha sofrendo para mudar este ou aquele detalhe de sua obra: “Há mais de um modo de queimar um livro, e o mundo está cheio de gente correndo por aí com fósforos”. Mais do que nunca, os “bombeiros” estão em toda parte. E é até preciso muito cuidado para não virar um deles.
Fonte: http://www.amalgama.blog.br/
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