quinta-feira, 14 de junho de 2012

A verdadeira batalha pelo Islã - Por Ahmed Daak e Harry Verhoeven, da Al-Jazeera

Esqueça ideia de um mundo árabe dividido entre terroristas e pró-ocidentais. Disputa real opõe islâmicos reformistas a arquiconservadores e dogmáticos

Das eleições no Egito pós-Mubarak [1] aos debates na Tunísia sobre liberdade de imprensa [2]: está em curso uma batalha pela alma política do mundo islâmico. Mas, diferente do que se previa nos dias da Guerra Global ao Terror [Global War on Terror (GWOT)], as visões em confronto não são o terrorismo jihadi e o secularismo à moda ocidental.

As novas realidades que emergem da Primavera Árabe mostram que o Islã ocupará posição chave no debate político, do Marrocos à Indonésia. Mas ainda não se vê com clareza se isso levará a maior coesão das sociedades ou aumentará as tensões no mundo islâmico e entre ele e atores externos. Para entender que feições terá o futuro, temos de analisar a luta que se trava no campo dos que creem: reformistas islamistas versus salafistas arquiconservadores.

Proliferam concepções erradas sobre a luta, resultado de condições sociopolíticas contemporâneas, mas que nada têm de novas: é a volta do confronto entre rivais ancestrais, com novos interesses em disputa. Debates sobre o papel adequado do Islã na política vêm despertando paixões desde o final do Califato Rashidun [3].
Enquanto os reformistas destacam o caráter dinâmico do Islã – os textos não podem jamais ser alterados, mas nossas interpretações mudam em função de novos desafios –, os salafistas partem de interpretação literalista do Corão e da Sunna do Profeta Maomé. Reforçam o conservadorismo tanto na esfera pessoal como no reino da política, o que produz posição muito ambivalente, para dizer o mínimo, em relação aos processos democráticos.

Ibn Taymiyyah, intelectual ativo no século 13, [4] e padrinho intelectual dos salafistas do século 21, rejeitou a participação popular nos processos de mudança política: “O que governa pode exigir obediência dos governados, porque até um governador injusto é melhor que a guerra e a dissolução da sociedade”. As disputas de hoje revisitam a antiga divisão entre os que creem na emancipação da sociedade mediante reformas sancionadas pelo Islã e os que questionam a inovação e o debate livre, seja na teologia seja na política.

Salafistas versus Islamistas
Apesar das muitas diferenças, há importantes semelhanças entre salafistas e islamistas. Não se trata de escolher entre ‘ocidentalização’ e ‘Islã tradicional’: nenhum desses campos existe nas categorias-caricatura da Guerra Global ao Terror. As duas fórmulas são produtos da modernidade [5], que pensa sobre política e sobre religião de modo profundamente moderno, e que responde à modernização com discursos, instituições e ideias que estão, todos, profundamente enraizados no imaginário do século 21.

O papel da religião na eleição egípcia
Apesar da retórica candente, não se trata de voltar à Arábia do século 7º. Ambos, salafistas e islamistas lamentam a perda de status nos séculos passados e propõem vias para um Renascimento do mundo islâmico. Ambos contestam a injustiça social, a corrupção do “Islã real” e a inabilidade dos muçulmanos para enfrentar os desafios que lhes chegam do ocidente. Ambos falam de um perdido passado de glórias e pregam que se reinvente o status-quo. Mas, enquanto os salafistas destacam a ordem, o ritual externo e a diferença religiosa dentro e fora do mundo islâmico, os islamistas destacam que a civilização islâmica sempre foi, historicamente, uma força progressista no mundo; que abraçou a inovação, a ciência e a racionalidade e engajou-se em livre debate dentro de um contexto islâmico que visa a integrar, não a dividir.

As questões nucleares em que salafistas e islamistas confrontam-se hoje são as questões da democracia liberal, da liberdade e da inclusão social. As respostas produzidas pela rivalidade entre eles – nas eleições no Egito; na guerra civil na Síria, onde já há três lados em guerra; dentro do Regime de Salvação do Sudão, etc. – estão determinando o futuro do mundo islâmico. Ambos, islamistas e salafistas, têm relacionamento difícil com eleições.

No tempo da descolonização, os dois grupos desejavam um renascimento político-espiritual, não apenas uma independência meramente formal.

Mas a ascensão do pan-arabismo e de governos socialistas – no Egito de Nasser, no Iraque de Saddam, na Líbia de Gaddafi – marginalizou todos os projetos de inspiração religiosa. Com esses regimes tornando-se cada vez mais autoritários, as opções de mudança de dentro para fora se reduziram drasticamente. Os salafistas firmaram um pacto faustiano: seguindo Ibn Taymiyyah, tornaram-se indiferentes aos desafios e provocações, e ganharam, a partir dos anos 1970s, a liberdade necessária para desenvolver suas próprias redes sociais, com apoio dos sauditas, para competir contra os islamistas. O levante salafista de 2012, incluindo a evidência de que o Partido Al-Nour[6] conquistou 25% dos assentos com direito a voto no Parlamento do Egito, é resultado direto[7] dessa decisão e de seus desenvolvimentos.

Mudando o centro político
Os islamistas têm mostrado relações mais amigáveis com a democracia eleitoral que os salafistas, mas houve experiências traumáticas, no passado, que levaram muitos a questionar as intenções da Fraternidade Muçulmana do Egito[8] e do Partido Ennahda da Tunísia. No Sudão e na Argélia, coalizões islamistas candidataram-se ao Parlamento, mas o processo levou a violência em larga escala. Em Cartun, os islamistas abandonaram o compromisso com a democracia, aliando-se aos militares para um golpe de estado em 1989 – aliança controvertida[9] que veio, depois, a dividir o Movimento Islâmico Sudanês, solapando suas promessas de modernização e de democratização. Em Argel, a Frente Islâmica de Salvação (FIS) alcançou maioria absoluta nas eleições parlamentares em 1991, mas recusaram-se a acomodar os interesses da poderosa classe militar da Argélia. Radicais dos dois lados enfrentaram-se numa guerra civil[10] que custou entre 150 mil e 200 mil vidas.

Os erros cometidos pelos islamistas da Argélia e Sudão chegaram ao ápice quando, já no quadro do poder absoluto, os teóricos da Guerra Global ao Terror conseguiram ignorar a divisão entre islamistas e salafistas: e os dois lados deixaram-se abordar pelo prisma da al-Qaeda e de uma radicalização possível, ao contrário do que se viu entre os “bons” secularistas. Mas a Primavera Árabe mudou o centro de gravidade político do confronto entre salafistas e islamistas e forçou os dois lados a um novo engajamento com a democracia.
Enquanto os salafistas começaram, relutantes, mas com sucesso, a participar de eleições, os islamistas abraçaram sua agenda islâmica original de liberdade, enfatizando as reformas econômicas, a governança participativa e a liberdade religiosa. Hoje, o momento é de grandes oportunidades no mundo islâmico, mas, também, de riscos extremos.

Apesar do ímpeto eleitoral crescente nos últimos anos, uma vitória dos salafistas nessa luta parece improvável, no longo prazo: a rígida teologia salafista oferece fraca orientação sobre como enfrentar o declínio econômico, a crise na educação[11] no mundo árabe e as massas jovens. Mesmo assim, os salafistas ainda ajudam a impedir que os islamistas alcancem vitória ampla. Os mais otimistas[12] argumentam que o envolvimento nas instituições políticas forçará os salafistas a construir soluções pragmáticas para as questões arroz-com-feijão. É pensamento de excessivo otimismo, que ainda pode ser eclipsado pela aliança entre os velhos establishments militares e os zelosos salafistas para torpedear o projeto de seus arqui-inimigos islamistas. Esse arranjo ameaça aprofundar a divisão entre sunitas e xiitas no Islã, pondo em risco a posição de minorias religiosas e levando a irrupções (nem sempre propriamente “espontâneas”) de violência contra “infiéis”, como se viu recentemente em ataques a igrejas no Iraque, Egito[13] e Sudão[14].

O renascimento islâmico
Escolher entre islamistas e salafistas não é escolher entre seis e meia dúzia. Muitos líderes islamistas amadureceram dramaticamente desde as experiências na Argélia e no Sudão e começaram a abandonar suas utopias revolucionárias, sem sacrificar os princípios. Embora muitos deles ainda se equivoquem muito sobre os direitos humanos “ocidentais”, o compromisso da grande maioria dos islamistas com o constitucionalismo, com dar maior destaque às mulheres muçulmanas na vida política e com promover maior harmonia no relacionamento com outras fés religiosas já não pode ser questionado. Vozes islamistas tornaram-se empenhadas e confiáveis defensoras desses princípios, mais, até, que muitos secularistas na Tunísia, na Argélia e no Egito, os quais, no passado, muitas vezes, empenharam-se mais em “dissolver a democracia para salvá-la”.

A comunidade internacional terá de aprender a conviver com um vibrante mundo islâmico religioso, com papel maior e mais visível para o Islã, na política do dia a dia: modernizar não significa ocidentalizar. Os que se preocupem com segurança internacional, liberdade de expressão e justiça social devem considerar bem-vindo o projeto trazido pelos islamistas, para derrotar o salafismo e as ditaduras. Há movimentos fortes, da Mauritânia à Malásia, por um renascimento social ético amplo, e por um renascimento islâmico que lance a civilização islâmica de volta à posição de destaque que lhe cabe, no cenário global.

Os que se interessem por ver, para além das discussões sobretudo simbólicas sobre turistas de biquinis e consumo de bebidas alcoólicas, um islamismo modernizante, como o de Tayyep Recip Erdogan na Turquia, não é fuga reacionária da realidade, mas grito sincero pela reestruturação progressista, a partir de direitos, no plano social doméstico e global. É também um modo de resistir contra uma forma de globalização que, para muitos, não realizou o projeto da modernidade – de plena mobilidade social e cada vez mais amplas liberdades individuais – e que, na prática, continua a aprofundar as injustiças e a gerar desorientação psicossocial.

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