Gaza: Quando Golias é judeu
A invasão ofende os Direitos Humanos diante da indiferença cúmplice das potências ocidentais
Marco
Longari/AFP
Na luta
desigual, de um lado morrem os civis, e muitas crianças, do outro sobretudo os
soldados
Cidade de Gaza, quinta-feira 24. Ruas cobertas de cadáveres. Casas sem fachada, esburacadas ou destruídas. Mães, pais, crianças e idosos aos prantos e gritos. Alguns seguram nos braços crianças mortas, por vezes decapitadas. Tanques de guerra. O incessante barulho ensurdecedor das metralhadoras dos soldados do Tsahal, ou IDF, o exército israelense, ou de bombas lançadas de caças F-18. Ou pelos navios de guerra no Mediterrâneo. A toda essa tragédia se mescla o assobio de mísseis, vindo de todas as partes, inclusive dos teleguiados, a marcar presença no céu. “Eles atiram nas pessoas, nas vacas, em qualquer coisa que se mova”, grita uma septuagenária. Nos seus olhos, como nos de seus conterrâneos, estampam-se o medo, o desespero, o horror. Motivos não escasseiam.
Na
quinta-feira 24, quando este artigo seria impresso, o número de baixas era de 700
palestinos, dos quais 150 crianças, e mais milhares de feridos. Segundo as
autoridades israelenses, 32 soldados tinham perdido a vida, e mais três civis
israelenses. Em Gaza falta água potável. As pessoas comem quando há comida,
praticamente dia sim, dia não. Hospitais não têm condições de tratar todos os
feridos. Ambulâncias, inclusive aquelas dos Médicins Sans Frontières, não
circulam na probabilidade de ser atingidas. Ambas as fronteiras para escapar
para o mundo, Erez, em Israel, e Rafah, no Egito, permanecem fechadas para os
palestinos, mesmo para aqueles mais ameaçados. Apagões são frequentes, de resto
como sempre. Porém, agora, mais amiúde.
Indago a
Hussam, meu fixer em várias viagens a Gaza, aquele que traduz em perfeito
inglês e me guia para evitar confrontos nessa minúscula Gaza em guerra, se
posso falar com minhas ex-fontes do Hamas. Claro, as autoridades dos EUA e da
União Europeia não tratam com “terroristas”, mas por que lidaram com o Exército
Republicano Irlandês, entre outros? Gostaria de entrevistar novamente, como em
2013, digo a Hussam, Mahmoud al-Zahar, ex-ministro do Exterior e um dos
fundadores do Hamas. Diga-se que Al-Zahar, de 69 anos, é o líder do Hamas, mas
por questões de segurança contra ataques israelenses, ele faria parte apenas do
conselho do Hamas. No entanto, esse médico, que já sofreu atentados e perdeu um
filho quando um caça F-15 lançou uma bomba contra sua casa, está escondido em
algum bunker, diz Hussam. O outro filho foi morto há anos em um confronto
armado. Poucos meses atrás, aqui mesmo, indaguei a Al-Zahar se a única solução
contra Israel é a luta armada. “Começamos a negociar em 1991, em Madri, mas
nunca houve um processo de paz, e sim um apoio à ocupação israelense”, dizia
então Al-Zahar. Fez uma pausa, e acrescentou: “A única solução é a luta
armada”.
Com seu 1,8
milhão de habitantes espalhados por apenas 40 quilômetros de extensão e 10 de
largura, a Faixa de Gaza, separada do mundo por um bloqueio imposto por Israel
depois da vitória em escrutínio democrático da legenda islamita Hamas, em 2006,
vive-se a enésima Nakba (catástrofe). Esse enredo de violência começa com a
expulsão dos árabes palestinos quando Israel venceu sua luta de independência
em 1948. Após a Guerra de Seis Dias, em 1967, mais alguns milhões de árabes
palestinos foram expulsos pelo Oriente Médio.
A chamada
Operação Margem Protetora, a atual, foi acionada pelo premier israelense
Benjamin Netanyahu em 8 de julho com os ataques ditos “cirúrgicos” de caças
F-18. Parecem tão cirúrgicos, que até o secretário de Estado dos EUA, John
Kerry, os questionou durante uma emissão da tevê estadunidense Fox News. Ao
acreditar que os microfones estivessem desligados, comentou ironicamente: “Como
são cirúrgicos os ataques dos israelenses”. Trata-se, porém, de um diplomata e
logo corrigiu o “erro”.
Os motivos
de Bibi, como é popularmente chamado Netanyahu, foram dois, ambos apoiados pela
chamada “comunidade internacional”, isto é, por, entre outros, Barack Obama,
Angela Merkel, François Hollande e Matteo Renzi. Primeiro, o sequestro e mortes
de três adolescentes na Cisjordânia, a outra parte da Palestina sem
contingência com Gaza, manobra das autoridades israelenses para dividir e
conquistar o vizinho árabe. Segundo motivo: os inúmeros foguetes Qassam
lançados pelo Hamas contra o território israelense. Mas a questão é mais
complexa do que pensam, ou fingem pensar, os aliados de Netanyahu. Tudo
indicaria que os adolescentes não foram assassinados com a autorização do
Hamas. E os foguetes seriam lançados de Gaza por grupos radicais envolvidos na
disputa do poder no território.
Magid
Shihade, professor de Relações Internacionais da Universidade de Birzeit, na
Cisjordânia, me diz: “Comunidade internacional, você concorda comigo, é um
jargão inconcebível. Eles (Obama, Merkel, Hollande etc.) não alcunharão o que
Netanyahu está a provocar em Gaza porque não pega bem para a dita comunidade
internacional. Shihade emenda: “O sionismo é uma ideologia racista e colonial.
Baseia-se na desapropriação, na deslocação e na separação das pessoas, na
supremacia dos judeus sobre os árabes palestinos nativos”.
Em 17 de
julho, uma incursão terrestre das Forças de Defesa Israelense elevou a dimensão
da carnificina. O motivo da intervenção terrestre foram os incessantes foguetes
oriundos de Gaza. Embora de forma proporcionalmente muito inferior àquela dos
palestinos, o Tsahal sofreu com a incursão, em meados de julho, várias baixas,
especialmente, parece, a do sargento Shaul Aaron. O Hamas diz que o capturou,
mas Tel-Aviv sustenta que ele poder ter sido morto. Se, porém, foi capturado,
algo que não estava ainda claro na quinta-feira da semana passada, o conflito
poderia se ampliar. E da mesma forma como o bloqueio de Gaza teve início com a
captura do soldado Gilad Shalit, a situação poderia piorar rapidamente. A
prisão de um israelense pelos palestinos é algo passível de elevar brutalmente
a tensão.
Para quem
está em Gaza, a postura da diplomacia ocidental é de um cinismo abissal. Mesmo
porque existe um evidente conluio entre o lobby judeu e a diplomacia
internacional. Durante nove meses, o secretário de Estado Kerry cuidou de
mostrar empenho a favor da paz, enquanto Israel continuava impunemente a
colonizar a Cisjordânia. Kerry dizia ser possível para Mahmoud Abbas,
presidente da Autoridade Palestina, ir adiante no plano de criação de um Estado
palestino apesar dos assentamentos. Palavras ao vento em que tremulam as
gravatas amarelas e laranja do secretário de Estado. Não é por acaso que ele
não goza de credibilidade alguma nas terras em conflito, mesmo porque suas
propostas carecem de qualquer substância. Gianni Vattimo, o filósofo italiano,
disse que gostaria de “comprar mais foguetes para o Hamas”. Vattimo, que já
entrevistei, disse: “Os europeus deveriam formar uma brigada internacional para
lutar com o Hamas, assim como voluntários lutaram contra Franco durante a
Guerra Civil Espanhola”.
O que
faremos por esse povo? Hussam, meu fixer, tem 45 anos. Nunca deixou Gaza.
Aprendeu inglês, perfeito, na universidade. Vive em Camp Beach, na cidade. Tem
mulher e seis filhos, durmo com estes em uma grande sala, todos vestidos.
Hussam e a mulher recolhem-se em um quarto separado. Ele anuncia quando podemos
tomar banho. À noite, coloca mesas de plástico no chão, visto que não há
mobília, e deposita pratos de comida. No ano passado, havia certa fartura.
Agora, é apenas pão sírio amanhecido e tabule.
Às 4 horas,
a mesquita ao lado lança o apelo, “Alá, o maior”, e todos se levantam, colocam
uma esteira no chão e rezam. Uma luz ilumina o nosso quarto. Sinto-me seguro,
devo confessar. Depois durmo. E muito bem. O Tsahal, contudo, atingiu um
minarete da mesquita. Hussam lamenta. Indago: “Você faria parte do Hamas?”
Responde: “Não, existem limites”.
Os Acordos
de Oslo de 1993 estabeleceram que a Autoridade Palestina governaria Gaza e a
Cisjordânia. Não foi o que se deu. Em 2012, a Assembleia-Geral da ONU
elevou a Palestina ao status de “Estado não integrante”. Vitorioso em 2006 em
Gaza, o Hamas expulsou o Fatah em 2007. Sete anos mais tarde, Fatah e Hamas fizeram
as pazes e se reuniram em abril de 2014. E eis o problema. Netanyahu não aceita
a união. Dividir é o que se pretende. Divide et impera, diziam os imperadores
romanos.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/
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