Quando Jerusalém-2014 faz lembrar Berlim-1933
Jornalista
israelense escreve: cenários não são iguais, mas surto de ódio antipalestino
estimulado por Telaviv envergonha história judaica
Os velhos
jornais no Ocidente não terão coragem de publicar essa matéria. Críticas muito
duras ao governo israelense vêm da própria imprensa liberal do país. Precisam
ser conhecidas, para que setores interessados em paz e justiça no Oriente Médio
saibam que podem encontrar apoio em importantes setores da sociedade
israelense. Talvez estejam ainda apáticos, por se sentirem isolados em meio à
manada que segue a propaganda oficial e a mídia, hegemonizada pelos setores
mais sectários (o diário Haaretz, onde
foi publicado o texto a seguir tem 10% dos leitores; os demais jornais são
controlados por magnatas estrangeiros da mídia conservadora).
O artigo
faz analogias entre o ambiente de histeria em Israel, estimulado de forma
oportunista por políticos da direita, e o que a Alemanha respirou, nos estágios
iniciais do nazismo. A publicação de artigos como esse em Israel, embora
chocantes, pode ser vista com esperança de que setores existentes na própria
sociedade israelense poderão, um dia, virar o jogo. Mas isso só ocorrerá se
houver também forte pressão internacional.
Trata-se de
salvar Israel do fascismo, do isolamento internacional, e de estabelecer entre
este país e os palestinos bases para um futuro de paz e boa vizinhança, única
forma de ambos escaparem da tragédia humanitária que avança no Oriente Médio. (Sérgio
Storch, da Rede de Judeus Progressistas)
Israelenses
queimam bandeira palestina e gritam slogans anti-árabes, durante onda de ódio
Em 9 de
março de 1933, os paramilitares camisas-marrons da SA nazista lançaram uma
ofensiva.“Em diversas partes de Berlim, um grande número de pessoas, a maioria
das quais aparentemente judias, foi atacado abertamente nas ruas e golpeado.
Algumas foram feridas gravemente. A polícia pode apenas recolhê-las e levá-las
ao hospital”, relatou o jornal londrino The Guardian. “Os judeus foram
espancados pelos camisas-marrons até sangrar nas faces e cabeças”, prosseguiu o
jornal. “Diante de meus olhos, paramilitares, babando como bestas histéricas,
perseguiram um homem em plena luz do dia e o chicoteavam”, escreveu Walter
Gyssling, no jornal.
Sei que
você ultrajou-se antes mesmo de chegar ao final do parágrafo anterior. “Como
ele ousa comparar incidentes isolados em Israel com a Alemanha nazista?”, você
está pensando. “Isso é uma banalização ofensiva do Holocausto”.
É claro que
você tem razão. Minha intenção não é traçar um paralelo. Meus pais perderam,
ambos, suas famílias, durante a II Guerra Mundial. Não preciso ser convencido
de que o Holocausto é um crime tão único que figura de modo destacado, mesmo
nos anais de outros genocídios premeditados.
Mas sou um
judeu e há cenas no Holocausto que estão gravadas indelevelmente em minha
mente, ainda que não estivesse vivo à época. Quando assisti vídeos e vi imagens
de gangues de judeus racistas de direita marchando pelas ruas de Jerusalém,
cantando “Morte aos Árabes”, caçando árabes aleatoriamente, identificando-os
por sua aparência ou sotaque, perseguindo-os em plena luz do dia, “babando como
bestas histéricas” e golpeando-os antes que a polícia pudesse chegar, a
associação histórica foi automática. Foi o que primeiro saltou à mente. Deveria
ser, penso, a primeira coisa a saltar à mente de qualquer judeu.
Não é
preciso dizer que Israel de 2014 não é “O Jardim das Bestas”, expressão que
Erik Larson usou para descrever, em seu livro, a
Alemanha de 1933. O governo de Telaviv não é tolerante com o vigilantismo ou os
gângsters, como foram os nazistas por algum tempo, antes que os alemães
começassem a se queixar de desordem nas ruas e dos danos à reputação
internacional de Berlim. Não tenho duvidas de que a polícia fará todo o
possível para prender os assassinos do garoto palestino cujo corpo calcinado
foi encontrado numa floresta de Jerusalém. Até rezo para descobrirem que o
assassinato não foi um crime de ódio [Em 6/7, a polícia israelense prendeu,
de fato, pessoas – judeus ortodoxos de extrema-direita – que confessaram a
autoria do crime, evidentemente motivado por ódio e racismo (Nota da
Tradução)].
Mas não nos
enganemos. As gangues de valentões judeus promovendo caçadas humanas não são
uma aberração. Não foi um acesso incontrolável e único de raiva, que se seguiu
à descoberta dos corpos de três estudantes sequestrados. Seu ódio inflamado não
existe num vácuo. É uma presença marcante, que cresce a cada dia, engolfando
setores cada vez mais amplos da sociedade israelense, alimentada num ambiente
de ressentimento, isolamento e auto-vitimização, impulsionado por políticos e
“especialistas” – alguns cínicos, outros sinceros – que se cansaram da
democracia e suas brechas e que anseiam por ver a imagem de Israel associada a
um único Estado, uma única nação e, em algum ponto desta espiral descendente,
um único Líder.
Em apenas
24 horas, uma página do Facebook convocando “revanche” pelos assassinatos dos
três garotos sequestrados recebeu dezenas de milhares de “curtidas”, e
encheu-se de centenas de apelos explícitos para matar árabes, onde quer que
estejam. Outra página, pedindo a execução de “extremistas de esquerda”,
alcançou quase dez mil “likes”, em dois dias. Além disso, inúmeros textos na
web e nas mídias sociais estão inundados de comentários dos leitores vomitando
o pior tipo de bile racista e pedindo morte, destruição e genocídio.
Estes
sentimentos foram ecoados nos últimos dias, ainda que em termos um pouco mais
velados, por membros do Knesset [o Parlamento israelense], que citam versos da
Torah sobre o Deus da Vingança e sua ordem de extermínio dos amalequitas. David
Rubin, que descreve a si mesmo como ex-prefeito de Shiloh, foi mais explícito:
em um artigo publicado no Israel National News, ele escreveu: “Um inimigo é um
inimigo e a única maneira de vencer esta guerra é destruir o inimigo, sem levar
excessivamente em conta quem é soldado e quem é civil. Nós, judeus, atiraremos
primeiro nossas bombas sobre alvos militares, mas não há, em absoluto,
necessidade de nos sentirmos culpados por arruinarmos as vidas, matarmos ou
ferirmos civis inimigos que são, quase sempre, apoiadores do Fatah ou do
Hamas”.
Pairando
sobre tudo isso estão o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu governo, que
insistem em descrever o conflito com os palestinos em tons rudes de “preto e
branco”, “bem contra o mal”; que descrevem os adversários de Israel como
incorrigíveis e irredimíveis; que nunca demonstraram o mínimo sinal de empatia
ou compreensão, diante das reivindicações de um povo que vive sob ocupação
israelense por meio século; que fazem pronunciamentos voltados a desumanizar os
palestinos aos olhos do público israelense; que perpetuam o sentimento público
de isolamento e injustiça; e que, portanto, estão abrindo caminho para ondas de
ódio homicida que começaram a emergir.
Algumas
pessoas ensaiarão um paralelo entre a terrível violência de direita que varreu
Israel depois dos Acordos de Oslo e a maré crescente de racismo. Em ambas, está
implicado o premiê Netanyahu. De seus discursos virulentos na Praça Sion contra
o governo da época ao assassinato de Yitzhak Rabin; e de sua
retórica antipalestina áspera à explosão horrível de racismo hoje.
Mas é uma
resposta fácil demais. Não basta culpar Netanyahu, sem questionar o resto de
nós, Judeus em Israel ou na Diáspora, os que fecham os olhos e os que desviam o
olhar, os que retratam os palestinos como monstros desumanos e os que veem
qualquer autocrítica como um ato de traição judaica.
A
comparação certamente é válida: a máxima de Edmund Burke – “Para o triunfo [do
mal], basta que os homens bons nada façam” – era correta em Berlim no início
dos anos 1930 e permanece verdadeira em Israel. Se nada for feito para reverter
a maré, o mal certamente triunfará – e não será preciso esperar muito.
Haaretz |
Tradução: Antonio Martins
Fonte: http://outraspalavras.net/
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