Noam Chomsky: Política Externa dos EUA – rede criminosa de proteção para as empresas privadas”
Há uma
“versão padrão recebida”, comum na academia, em pronunciamentos do governo e no
discurso público, segundo a qual o primeiro dever de qualquer governo é prover
segurança; e que a principal preocupação dos EUA e seus aliados, desde 1945,
sempre foi a “ameaça russa”.
Há vários
meios para avaliar-se essa doutrina. Pode-se começar por responder uma pergunta
óbvia: O que aconteceu quando a ameaça russa desapareceu, em 1989? Resposta:
nada aconteceu; tudo continuou como antes.
Pouco
depois, os EUA invadiram o Panamá matando, provadamente, milhares de pessoas e
instalando ali um regime-cliente. Essa era prática rotineira nos domínios
dominados pelos EUA. Mas esse caso não foi rotineiro: pela primeira vez, um
grande ato de política exterior não se explicava por qualquer tipo de suposta
ameaça russa!
Daquela
vez, inventaram-se e foram distribuídos vários e vários pretextos fraudulentos
para aquela invasão, que se desmontaram instantaneamente, logo ao primeiro
exame. A imprensa-empresa tudo louvava entusiasticamente, aquele grande feito
de derrotar o Panamá. Não se preocupava com a evidência de que os pretextos
eram ridículos, que o ato em si não passava de violação gravíssima da lei
internacional, que estava sendo execrado em muitas partes do mundo,
especialmente na América Latina.
A
imprensa-empresa também ignorou o veto dos EUA contra proposta de Resolução do
Conselho de Segurança da ONU que condenaria os crimes cometidos por soldados
dos EUA durante a invasão. Todos os demais votantes votaram unanimemente a
favor da condenação aos EUA; a Grã-Bretanha absteve-se; e os EUA vetaram.
Rotina. E ficou tudo por isso mesmo (o que também é rotina).
De El
Salvador à Fronteira Russa
O governo
de George H.W. Bush lançou nova política de segurança nacional e orçamento para
a defesa, em reação ao colapso do inimigo global. Não fazia sentido algum. Como
da primeira vez, mobilizaram-se falsos pretextos. Eram outros pretextos, mas
eram igualmente falsos pretextos. É que, como depois se viu, era necessário
manter um establishment militar quase tão grande quanto o do resto do mundo,
tudo somado, e muito mais avançado na sofisticação tecnológica – mas não para
defender o país contra uma inexistente União Soviética. A desculpa, dessa vez,
foi a crescente “sofisticação tecnológica” de potências do 3º Mundo.
Intelectuais
disciplinados compreenderam que não se recomendava que se lançassem em ridículo
total, e, portanto, mantiveram-se em silêncio.
Os EUA,
insistiam os novos programas, tinham de manter sua “base industrial de defesa”.
A frase é eufemística, para falar em geral de indústria high-tech que depende
pesadamente de vasta intervenção estatal para pesquisa e desenvolvimento, quase
sempre mascarada como se fosse atividade a serviço do Pentágono. É o que
economistas continuam a chamar de “economia de livre mercado” dos EUA.
Uma das
cláusulas mais interessantes dos novos planos tinha a ver com o Oriente Médio.
Ali, ficava decidido, Washington tinha de manter forças de intervenção que
tomariam como alvo uma região crucial, cujos “principais problemas não podem
ser entregues à porta do Kremlin”. Ao contrário dos 50 anos de mentiras
anteriores, confessava-se discretamente que a principal preocupação não eram os
russos, mas o que se chama “nacionalismo radical”, quer dizer: qualquer
nacionalismo independente que os EUA não controlem completamente.
Tudo isso
tinha evidente conexão com a visão padrão, mas passou despercebido – ou,
talvez: por isso mesmo, passou despercebido.
Outros
eventos importantes aconteceram imediatamente depois do fim do Muro de Berlim,
fim da Guerra Fria. Um deles aconteceu em El Salvador, país que recebia a maior
ajuda militar dos EUA em todo o mundo – exceto Israel-Egito, que são caso à
parte – e com os piores registros de desrespeito aos direitos humanos do
planeta (essa correlação também é frequente e bem direta).
O alto
comando salvadorenho ordenou que a Brigada Atlacatl invadisse a Universidade
Jesuíta e assassinasse seis destacados intelectuais latino-americanos, todos
eles jesuítas, inclusive o reitor, Fr. Ignacio Ellacuría, e testemunhas (a
governanta da residência do reitor e a filha dela).
A Brigada
acabava de voltar de treinamento avançado contrainsurgência no John F. Kennedy
Special Warfare Center and School do Exército dos EUA, em Fort Bragg, North
Carolina, e deixou um rastro de milhares das vítimas de sempre ao longo da campanha
de terror liderada pelos EUA em El Salvador – parte de campanha de terror e
tortura mais ampla, por toda a região.
Tudo,
rotina. Tudo ignorado e virtualmente esquecido nos EUA e pelos aliados, tudo,
como sempre, rotina. Mas isso nos diz muito sobre os fatores que dirigem a
política, se nos damos o trabalho de observar o mundo real.
Outro
evento importante aconteceu na Europa. O presidente soviético Mikhail Gorbachev
concordou com permitir a unificação da Alemanha e que a Alemanha fosse
integrada como membro à OTAN – aliança militar hostil. À luz da história
recente, foi a mais surpreendente das concessões. Mas tinha havido uma troca: o
presidente Bush e o secretário de Estado James Baker haviam concedido que a
OTAN não seria expandida “uma polegada, para o Oriente”, falando da Alemanha
Oriental. Imediatamente depois de firmado o acordo, os dois expandiram a OTAN
para a Alemanha Oriental.
Gorbachev
ficou obviamente ultrajado. Mas quando reclamou, Washington explicou-lhe que a
coisa não passara de compromisso verbal, acordo de cavalheiros, sem força
alguma. Se fora suficientemente tolo a ponto de acreditar na palavra do
presidente e do secretário de Estado dos EUA, problema dele.
Isso também
era rotina, como rotina eram também a silenciosa aceitação e a aprovação da
expansão da OTAN, nos EUA e, em geral, no ocidente. O presidente Bill Clinton
então expandiu ainda mais a OTAN, direto para junto das fronteiras da Rússia.
Hoje, o mundo encara grave crise que é, em medida não pequena, resultado dessas
políticas.
A sedução
de saquear os mais pobres
Outra fonte
de provas são os registros históricos que vão chegando ao conhecimento público.
Esses registros contêm dados reveladores dos reais motivos da política de
estado dos EUA. A história é rica e complexa, mas alguns temas têm
persistentemente o papel dominante. Um deles foi claramente articulado numa
conferência para o hemisfério ocidental que os EUA convocaram, no México, em
fevereiro de 1945, na qual Washington impôs “Uma Carta Econômica para as
Américas” [orig. An Economic Charter of the Americas] que visava a eliminar o
nacionalismo econômico “em todas as suas formas”. Havia uma condição “não
dita”: o nacionalismo econômico ficava aprovado, até recomendado, para os EUA,
cuja economia depende vitalmente de massiva intervenção do estado.
A
eliminação do nacionalismo econômico para os outros entrou em agudo conflito
com a posição dos latino-americanos naquele momento, posição que funcionários
do Departamento de Estado descreveram como “a filosofia do Novo Nacionalismo [o
qual] abraça políticas que visam a assegurar melhor distribuição de riqueza e a
melhorar os padrões de vida das massas”.
Como outros
analistas políticos norte-americanos acrescentaram, “os latino-americanos estão
convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos
de um país deve ser o povo daquele país”.
Claro que
não podia ser. Para Washington, os “primeiros beneficiários” têm de ser os
investidores norte-americanos, com a América Latina preenchendo a função de
dar-lhes os meios. Não poderia haver, como os governos Truman e Eisenhower
deixariam bem claro, “desenvolvimento industrial excessivo” que viesse a abalar
os interesses dos EUA.
O Brasil,
por exemplo, poderia produzir aço de baixa qualidade com o qual as empresas
norte-americanas não precisavam preocupar-se; mas a produção seria considerada
“excessiva”, se entrasse em concorrência com as empresas norte-americanas.
Preocupações
semelhantes ressoaram no período do pós IIª Guerra Mundial. O sistema global
que era dominado pelos EUA estava ameaçado por o que documentos internos chamam
de “regimes radicais e nacionalistas” que respondem a pressões populares por
desenvolvimento independente. Essa foi a preocupação que motivou os golpes que
derrubaram os governos parlamentaristas do Irã e da Guatemala em 1953 e 1954,
além de vários outros golpes (Brasil, 1964 – Nrc).
No caso do
Irã, uma preocupação principal foi o impacto potencial da independência
iraniana sobre o Egito, então em torvelinho contra a prática colonial
britânica. Na Guatemala, além do crime da nova democracia que dava poder à
maioria camponesa e invadia possessões da United Fruit Company — o que já seria
ofensa suficiente – Washington preocupava-se com a agitação nos meios
trabalhistas e a mobilização popular em ditaduras apoiadas pelos EUA nos
arredores.
Nos dois
casos, as consequências chegam até os nossos dias.
Literalmente,
não houve um dia, desde 1953, em que os EUA não tenham torturado o povo do Irã.
E a Guatemala ainda é uma das câmaras de horror do mundo. Até hoje há maias que
fogem dos efeitos das campanhas militares quase-genocidas no país, patrocinadas
pelo presidente Ronald Reagan e seus mais altos representantes. Como um diretor
da Oxfam, médico guatemalteco, relatou recentemente:
Há
deterioração dramática do contexto político, social e econômico. Ataques contra
defensores de Direitos Humanos aumentaram 300% no último ano. Há clara
evidência de que é estratégia bem organizada pelo exército e pelo setor
privado. Ambos capturaram o estado, para manter o status quo e impor
o modelo econômico extrativista, empurrando os povos nativos dramaticamente
para fora de suas terras, que vão sendo ocupadas pela grande indústria de
mineração, African Palm e fazendas de cana-de-açúcar. Além disso, o movimento
social, que defende as terras e os direitos dos nativos foi criminalizado,
muitos líderes estão presos e muitos outros foram assassinados.
Nada se
sabe sobre isso nos EUA, e até a causa óbvia desses fatos também é mantida
ocultada.
Nos anos
1950s, o presidente Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles
explicaram claramente o dilema que os EUA enfrentavam. Reclamaram de que os
comunistas gozavam de vantagem injusta. Os comunistas podiam “apelar diretamente
às massas” e “obter o controle dos movimentos de massa, coisa que nós não
podemos fazer. Eles falam diretamente aos pobres e sempre querem saquear os
ricos”.
Isso, sim,
é problema. Os EUA sempre encontraram dificuldades para falar diretamente aos
pobres e mostrar aos pobres sua doutrina segundo a qual os ricos podem saquear
os pobres.
O exemplo
cubano
Exemplo
claro do padrão geral foi Cuba, quando afinal se tornou independente em 1959.
Em poucos meses começaram os ataques militares contra a ilha. Pouco depois, o
governo de Eisenhower decidiu, secretamente, mudar o regime em Cuba. Em
seguida, John F. Kennedy tornou-se presidente. Queria dedicar mais atenção à
América Latina. Então, logo no início do governo, criou um grupo para
desenvolver políticas, sob a coordenação do historiador Arthur Schlesinger, que
resumiu suas conclusões para apresentar ao presidente que chegava.
Como
Schlesinger explicou, o mais ameaçador, de haver uma Cuba independente, era “a
ideia de Castro de o país tomar as questões nas próprias mãos”.
Desgraçadamente, era ideia que muito atraía as massas na América Latina, onde
“a distribuição de terra e de outras modalidades de riqueza nacional favorecem
muito as classes proprietárias, e onde os pobres e oprimidos, estimulados pelo
exemplo da Revolução Cubana, já começam a exigir oportunidades para uma vida
decente”. Para Washington, só problemas. E o dilema de sempre.
Como a CIA
explicou:
A extensiva
influência do “castrismo” não é função do poder cubano (…) a sombra de
Castro mostra-se grande porque as condições sociais e econômicas na América
Latina convidam a fazer oposição a qualquer autoridade e encorajam a agitação
para mudança radical.
E a Cuba de
Castro oferece modelo para isso. Kennedy temia que a ajuda russa pudesse fazer
de Cuba uma “vitrine” do desenvolvimento, o que daria vantagem aos soviéticos
em toda a América Latina.
O Conselho
de Planejamento Político do Departamento de Estado alertou que:
(…) o
perigo básico que enfrentamos com Castro está (…) no impacto que a simples
existência de seu governo tem sobre o movimento esquerdista em muitos países
latino-americanos (…). O simples fato é que Castro representa desafio
bem-sucedido aos EUA, negação de toda nossa política hemisférica de quase um
século e meio
Queria
dizer: desde a Doutrina Monroe de 1823, quando os EUA declararam sua intenção
de dominar o hemisfério.
Naquele
momento, o objetivo imediato era conquistar Cuba, mas não era possível por
causa do poder do inimigo britânico. Ainda assim, o grande estrategista John Quincy
Adams, pai intelectual da Doutrina Monroe e do Destino Manifesto, informou aos
seus colegas que, com o tempo, Cuba lhes cairia no colo, pelas “leis da
gravitação política”, como a maçã cai da árvore. Em resumo: o poder dos EUA
aumentaria e o da Grã-Bretanha encolheria.
Em 1898, o
prognóstico de Adams se realizou. Os EUA invadiram Cuba, sob o disfarce de
“libertadores”. Na verdade, impediram que a ilha se tornasse independente da
Espanha e a converteram em “colônia virtual”, como disseram os historiadores
Ernest May e Philip Zelikow. Cuba permaneceu nessa situação até janeiro de
1959, quando se tornou independente. Desde então, é alvo de guerras terroristas
movidas pelos EUA, e que começaram nos anos Kennedy, e de tentativas de
estrangulamento econômico. Não por causa dos russos.
A política
dos EUA para Cuba tornou-se cada vez mais dura; e ainda mais sob governo
Democrata, inclusive sob Bill Clinton, que conseguiu ultrapassar Bush pela
direita, nas eleições de 1992. Nesse quadro, os eventos acima listados deveriam
ter afetado a validade da doutrina, na discussão da política externa e dos
fatores que incidem sobre ela. Mas, não. Nada disso. Outra vez, o impacto dos
fatos sobre a teoria foi mínimo.
O vírus do
nacionalismo
Tomando
emprestada a terminologia de Henry Kissinger, o nacionalismo é “um vírus” cujo
“contágio pode disparar”. Kissinger, aí, falava do Chile de Salvador Allende. O
vírus, no caso, era a ideia de que podia haver via parlamentar para algum tipo
de democracia socialista. O modo de enfrentar tamanha ameaça foi destruir o
vírus e vacinar todos que pudessem ter sido contaminados; a solução típica foi
impor em todos os casos os mais mortíferos estados de segurança nacional. Foi
feito assim no Chile em
1973 (imitando o golpe MILICANALHA no Brasil/1964 - Nrc). Mas é
importante perceber que esse tipo de pensamento permanece vivo em todo o mundo.
Foi esse,
por exemplo, o pensamento que havia por trás da decisão de opor-se ao
nacionalismo vietnamita no início da década dos 1950s e apoiar o esforço da
França para reconquistar sua ex-colônia. Temia-se que o nacionalismo vietnamita
independente pudesse ser um vírus que contaminaria as regiões circundantes,
inclusive a Indonésia, riquíssima em recursos.
Poderia até
levar o Japão – chamado de “superdominó”, por John Dower, especialista em Ásia
– a tornar-se o centro de uma nova ordem industrial e comercial independente do
tipo que o Japão imperial havia lutado então recentemente para estabelecer.
Tudo isso,
por sua vez, significaria que os EUA teriam perdido a guerra pelo Pacífico,
opção que não se considerava em 1950. O remédio era claro – e foi usado com
bastante sucesso: o Vietnã foi virtualmente destruído e foi cercado por ditaduras
militares que mantiveram o “vírus” cercado e contiveram o contágio.
Em
retrospecto, McGeorge Bundy, Conselheiro de Segurança Nacional de
Kennedy-Johnson, considerou que Washington deveria ter terminado a Guerra do
Vietnã em 1965, quando a ditadura de Suharto foi instalada na Indonésia, com
massacres terríveis, que a CIA comparou aos crimes de Hitler, Stálin e Mao. Mas
o massacre para empossar Suharto foi saudado com incontida euforia nos EUA e no
ocidente em geral, porque o “espantoso banho de sangue”, como a
imprensa-empresa o comemorava eufórica, pôs fim a qualquer ameaça de contágio e
abriu os ricos recursos da Indonésia aos exploradores ocidentais. Depois de
isso estar feito, a guerra para destruir o Vietnã já foi supérflua, como Bundy
reconheceu, retrospectivamente.
O mesmo é
verdade na América Latina, nos mesmos anos: um “vírus” depois do outro foi
viciosamente atacado e destruído ou enfraquecido a ponto de mal sobreviver. A
partir do início dos anos 1960s, uma praga de repressão foi imposta em todo o
continente, uma história de violência sem precedentes no hemisfério, que se
estendeu também para a América Central nos anos 1980s, no governo de Ronald
Reagan, assunto ainda vivo na memória que não é preciso rememorar aqui.
Muito disso
tudo foi assim também no Oriente Médio. As relações especialíssimas entre EUA e
Israel ganharam a forma que hoje têm em 1967, quando Israel aplicou golpe
violentíssimo contra o Egito, o centro do nacionalismo árabe secular. Ao
fazê-lo, Israel protegeu a Arábia Saudita, aliada dos EUA, então engajada em
conflito militar contra o Egito, no Iêmen.
A Arábia
Saudita, é claro, é o estado islâmico fundamentalista mais radical, e também é
estado missionário, que gasta somas astronômicas para difundir doutrinas
salafistas wahhabistas além de suas fronteiras. Vale a pena lembrar que os EUA,
como, antes deles, a Inglaterra, tenderam sempre a apoiar o Islã
fundamentalista contra o nacionalismo secular, que sempre foi percebido como
ameaça mais grave de independentismo e de contágio (o “vírus”, não esqueçam).
O valor do
segredismo
Muito há
para dizer, mas o registro histórico demonstra muito claramente que a doutrina
padrão tem pouca serventia. A segurança, no sentido normal, não é fator na
formação política. Repito: no sentido normal de “segurança”. Mas, para avaliar
a doutrina padrão, é preciso perguntar o quê significa “segurança”. “Segurança”
para quem?
Uma
resposta é: segurança para o poder do estado. Há muitos exemplos. Consideremos
um exemplo atual. Em maio, os EUA concordaram que apoiariam uma resolução do
Conselho de Segurança da ONU para que a Corte Internacional de Justiça, em
Haia, investigasse crimes de guerra na Síria, mas sob uma condição: não poderia
haver investigação nenhuma de qualquer possível crime de guerra cometido por
Israel. Nem de crimes cometidos por Washington. De fato, ninguém nem precisaria
declarar essa “proteção” aos EUA, porque os EUA são a única nação autoimunizada
contra a ação de qualquer sistema legal internacional.
De fato, há
uma lei do Congresso dos EUA que autoriza o presidente a usar força armada para
“resgatar” qualquer norte-americano que seja levado a Haia para ser julgado: é
a “Netherlands Invasion Act” [Lei da Invasão dos Países Baixos], como é às
vezes chamada na Europa. Assim, mais uma vez, se comprova a importância de
proteger a segurança do poder do estado.
Mas
proteger a segurança do estado, contra quem? Pode-se muito bem argumentar que a
principal preocupação do governo é proteger a segurança do estado e contra a
própria população. Como sabe qualquer pessoa que se tenha dedicado a vasculhar
arquivos, o segredismo, o chamado “sigilo” que protege o governo, raramente é
motivado por legítima preocupação de segurança; praticamente em todos os casos
o segredismo oficial visa, exclusivamente, a manter a população em total
ignorância, sem saber do que se passa.
E por boas
razões, como explicou lucidamente o ilustre intelectual liberal e conselheiro
governamental Samuel Huntington, professor de ciência de governo na Harvard
University. Nas palavras dele:
Os
arquitetos do poder nos EUA devem criar uma força que seja sentida, mas não
seja vista. O poder permanece forte quando se guarda no escuro; exposto à luz
do sol, começa a evaporar.
Huntington
escreveu isso em 1981, quando a Guerra Fria voltava a esquentar, e explicou
também que:
(…) você
tem de vender [intervenção ou outra ação militar] de modo tal que crie a falsa
impressão de que o que você combate é a União Soviética. É o que os EUA sempre
fizeram, desde a Doutrina Truman.
São
verdades simples, raramente reconhecidas, mas ajudam a ver por dentro do poder
e das políticas do estado, e têm reverberações até nossos dias.
O poder do
Estado tem de ser protegido contra seu inimigo doméstico; em agudo contraste
com isso, a população não tem como se proteger contra o poder do Estado.
Impressionante exemplo atual é o ataque frontal, mortal, que o governo Obama
move contra a Constituição dos EUA, com seu programa de vigilância interna
massiva. A coisa, é claro, justifica-se sob o argumento da “segurança
nacional”. Mas é o que dizem virtualmente todos os estados para justificar
todas as suas ações e, assim sendo, pouco significa ou informa.
Quando o
programa de vigilância total da Agência de Segurança Nacional dos EUA foi
desmascarado pelas revelações de Edward Snowden, altos funcionários correram a
declarar que a vigilância total teria evitado 54 atos terroristas. No
inquérito, o número já baixou para uma dúzia. Na sequência, um painel de alto
nível criado pelo governo logo descobriu que, de fato, só um caso fora
realmente “descoberto”: alguém mandara US$ 8.500 para a Somália. Foi o único
“benefício” obtido dessa vasto ataque contra a Constituição e, claro, também
contra milhões de outras pessoas em todo o mundo.
A atitude
da Grã-Bretanha é interessante. Em 2007, o governo britânico contratou a
colossal agência de espiões de Washington, para que “analisasse e recolhesse
todos os números de celulares, fax, endereços de e-mails e IPs de qualquer
cidadão/ã britânico/a que houvesse em seu banco de dados” – como o The Guardian
noticiou. Dá indicação útil da importância relativa, aos olhos do governo, de o
estado proteger a privacidade dos próprios cidadãos e das encomendas que
Washington recebe.
Exemplo
atual são os gigantescos acordos comerciais que estão sendo negociados, as
“parcerias” Trans-Pacífico e Trans-Atlântico. Estão sendo negociadas em
segredo, mas não totalmente em segredo. Absolutamente não são segredo para as
centenas de advogados de corporações que estão redigindo as cláusulas e seus
muitos detalhes. Não é difícil adivinhar quais serão os resultados, e os raros
“vazamentos” que se conhecem sugerem que o que se espera e teme, sim, é o que
acontecerá.
Como o
NAFTA e outros desses “pactos” e “parcerias”, não são acordos de livre comércio.
De fato, sequer são acordos de comércio: são, em primeiro lugar, acordos que
fixam os direitos dos investidores.
Mais uma
vez o segredismo, o “sigilo”, é criticamente importante para garantir segurança
à parte que interessa do eleitorado doméstico de qualquer governo: ao setor
empresarial, chamado “corporativo”, às empresas privadas.
Por Noam
Chomsky, 4th mídia. Original em “Noam
Chomsky: America’s Real Foreign Policy – A Corporate Protection Racket”.
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu e publicado em redecastorphoto
Fonte: http://www.revistaforum.com.br/blog/
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