Entre
xícaras de capuccino, numa manhã uruguaia, escritor divaga sobre mãos da
memória, resistência às ditaduras, governo Dilma e estado do futebol
Montevidéu
tem seus próprios ventos, que se parecem, em muito, com crônicas de cidade
pequena. Além de estreita, antiga. Onde prédios velhos se tocam no alto do céu
e olhos se cumprimentam nas praças regadas de folhas. Cafés que falam muitas
línguas recebem durante o dia linguagens de todas as partes. São gestos de
histórias vizinhas contracenando com sentimentos interioranos que a capital
uruguaia abriga em si. Não deixam de captar os olhares, as vozes, as vidas.
Uma das
ruas mais antigas de Montevidéu é também a que abriga o Café Brasileiro, um dos
espaços mais charmosos de Ciudad Vieja, com arquitetura típica do século
19. Ali, onde o vento do lado de fora parecia fazer a curva para o continente,
foi que esperamos pelo encontro com Eduardo Galeano, um dos maiores escritores
de nossa América Latina.
Enquanto
contávamos os minutos para sua chegada, as fotografias nas paredes revelavam a
proximidade que o autor tinha com o local. Eram inúmeras fotos suas. Não seria,
então, coincidência estarmos ali, em um lugar escolhido por ele, naquela manhã
de sábado. Devia ser seu mais aconchegante quintal, no qual nos acomodamos
logo, sem saber se pelo apreço visual da madeira fria que estruturava o local,
ou pelo cheiro de um café tão tipicamente próximo ao nosso. As duas coisas,
talvez.
Galeano
chegou acompanhado de sua filha Florência, e entrou sorrateiro, sem que
escutássemos o barulho de seus passos. Quando nos demos por encontrados,
tomou-nos as mãos e cumprimentou-nos carinhosamente.
“Veja se
isso aqui não parece um romance policial”, atestou. “Quando olhei vocês dois
aqui sentados, disse logo à Florência: são eles!”, sorriu com um humor de quem
se sente em casa. Não demoramos a deixar nossos olhares curiosos de tudo
focarem em seus olhos azuis, capazes de iluminar todo o ambiente.
Antes mesmo
de o café chegar, contamos a ele o motivo que nos levara ali – uma tenra
admiração junto à vontade de estabelecer conversa com vozes e olhares. O que
falaríamos a um jornalista que já havia concedido inúmeras entrevistas a tantos
veículos? Que a conversa fluísse, pois. Que pudéssemos assentar em um sábado de
sua vida e compreender o que as histórias e a despretensão de estar ali, junto
a ele, nos trouxessem às mãos.
O primeiro
gole de cappuccino veio quando comentamos sobre as propagandas políticas que
vimos a caminho do encontro, e sobre as eleições presidenciais que também
acontecerão esse ano no Uruguai. Galeano não demorou a enfatizar suas
percepções sobre o assunto, apontando, com os dedos pouco acima da mesa, para
as ruas que cercavam o Café.
“Eu não
entendo a política uruguaia”, afirmou. “A divisão partidária me confunde. Aqui,
dentro de um partido que se assume como ‘esquerda’, existem frentes
conservadoras e outras de extrema esquerda que disputam entre si. Então, antes
do embate eleitoral, existe uma discussão de quem é que lidera o partido. Nunca
vou entender isso”, completou, afirmando ainda a dificuldade que há em se
estabelecer uma linha de governo dessa forma.
Governo
Dilma
Comentamos
o quanto também é dificultoso no Brasil estabelecer identidade com um dos mais
de trinta partidos existentes. “Eles deixam complexo o que é extremamente
simples”, retomou, colocando mais um gole do seu cappuccino sem açúcar na
garganta. Sobre o governo de Dilma Roussef, afirmou que é um bom governo, de
forma geral.
“Teve
muitos erros e acertos, mas uma coisa é fato: o governo Dilma é claramente uma
continuidade do governo Lula, o que não é ruim. Continua com boas políticas
sociais e de base. No entanto, por conta do perfil de política do PT, que vem
mudando nas últimas décadas, Dilma se preocupou demasiadamente com o modo de
fazer política através das muitas alianças, e isso pode ter atrasado medidas
importantes à população”, destacou.
Quando se tratou
de política, o autor de As Veias Abertas da América Latina não ousou deixar de
lado o peso histórico das ditaduras militares que se espalharam pelo continente
no século 20.
Jornalista
exilado por duas vezes, Galeano esteve no Brasil em anos de chumbo, quando
trabalhava para um jornal de Montevidéu, e seu editor pediu que escrevesse
sobre a realidade social brasileira com a ditadura.
“Ele pediu
que eu fosse ao Brasil, mas, por ter ido diversas vezes ao país, disse que o
faria do Uruguai mesmo. Insistiu e eu fui até o Rio de Janeiro. Queria que eu
visse o modo como as pessoas viviam a ditadura nas ruas. O que mais me chamou a
atenção foi uma frase em um muro, que pedia que o governo brasileiro ‘fosse
logo entregue nas mãos de Charles Elbrick’, embaixador estadunidense na época”,
assinalou, rindo do quanto aquela frase era certeira ao resumir suas impressões
sobre aquele período. “Aquilo materializava a insatisfação diante dos rumos que
o país tomava”, concluiu.
Observávamos
a naturalidade com que Galeano enunciava. Era terno ao fazê-lo. Não havia
dúvidas de que sua sutileza com as palavras, expressa principalmente em O Livro
dos Abraços, que contou-nos ser seu preferido, também se refletia na calma e
tranquilidade de sua fala.
Ao se
tratar de anos ditatoriais, contamos o quanto veículos brasileiros têm trazido
à tona as memórias da resistência com relação ao regime militar. Citamos o
exemplo das histórias que retratam a realidade das universidades brasileiras na
época e o quanto esses espaços, que sempre foram considerados centros de
resistência e formação ideológica social, foram claramente reprimidos pelo
governo.
Havia temor
ante o crescimento de ideias opositoras, o que culminava na infiltração de
pessoas ligadas à ditadura no espaço universitário e a exclusão de alunos e
professores considerados rebeldes. Hoje, a sobrevivência destes locais
representa um símbolo de resistência àquele governo. Sobre isso, relatou a
maneira similar com que a ditadura uruguaia agiu naqueles anos.
“A memória tem
mãos”
“A ditadura
uruguaia agiu de forma parecida. Este Café, por exemplo, foi reconstruído pelas
mãos da memória. Porque a memória tem mãos. Por três vezes, esse espaço foi
destruído pela ditadura. Era considerado um local de típico encontro da classe
intelectual daqui. Vinham com um caminhão durante a noite e desmanchavam o
lugar. Arrancavam os pisos, retiravam as mesas e cadeiras, roubavam os lustres.
No entanto, os frequentadores sempre tinham a disposição de reconstruir o Café
através de suas lembranças em fotos e fatos”, contou-nos com brilho nos olhos
que ora miravam em nós, ora nas paredes com fotografias de velhos conhecidos.
Lembrou-se
também de uma vez que esteve em Leningrado – sua filha o corrigiu atentando ao
atual nome, São Petersburgo –, quando as pontes da cidade, que foram destruídas
pela guerra, estavam sendo reconstruídas por moradores através de fotografias.
A memória parecia dar-lhe as mãos, ali.
O suspiro
forte das lembranças abriu espaço para que nos entregasse dois de seus livros, Mulheres
e Dias e noites de amor e de guerra, que trouxera especialmente para nos
presentear. Assinou com doçura. “Abraços, Galeano”, desenhando um porquinho
abaixo de seu nome. Também fez isso nos livros que trouxemos para receber sua
assinatura.
Quando perguntado
sobre a escolha desse animalzinho, não demorou a dizer que “alguns escritores
escolhem dragões e serpentes como mascotes de suas obras e assinaturas. Eu
escolhi o porquinho, pois ninguém o havia escolhido. Gosto do porquinho”. Sua
graça fez com que todos à mesa sorrissem.
A ele,
entregamos presentes escolhidos com cautela. O livro Deus Foi Almoçar, do
escritor paulistano Férrez, e o filme O Som ao Redor, do diretor recifense
Kléber Mendonça Filho. Não poderíamos deixar o autor de Futebol ao Sol e à
Sombra partir sem indagá-lo sobre uma de suas maiores paixões. Qual seria,
então, sua opinião sobre o futebol sul-americano?
Futebol
Galeano foi
preciso no chute. “Ele continua sendo uma característica muito forte de nossa
cultura, mas as atuais condições do esporte no mundo, baseadas na
comercialização do futebol, fazem com que nossos jogadores sejam vendidos muito
cedo, o que provoca pouca contribuição ao nosso modo de jogar”, respondeu.
Completou dizendo que, no entanto, os jogadores sul-americanos têm um histórico
de mudanças através de pequenas revoluções.
“Há um
movimento no Chile em que os jogadores se uniram e começaram a fazer parte da
tomada de decisão na liga. O Bom Senso Futebol Clube também é outro exemplo. O
futebol não pode se render à política de interesses que atualmente dirige os
clubes”, reiterou. Comparou esse exemplo ao da Democracia Corintiana, que
surgiu na década de 1980, liderada por Sócrates, “que era muito meu amigo”,
ressaltou. Finalizou com uma pergunta que um dia fizeram a Sócrates sobre essa
amizade, que também levantara nossa curiosidade. “Sócrates respondeu: ‘O
Eduardo fala de futebol e eu falo de política. É simples’”, sorriu com a
intimidade contada.
O relógio
batia meio-dia, mas o charme matinal uruguaio não nos tirava o sentimento de
que ainda pareciam nove da manhã. Galeano aproximou-se da mesa tanto quanto se
achegou a nós.
Perguntou-nos onde vivíamos no Brasil. “Vivemos entre São Paulo
e Rio de Janeiro”, respondemos. Como conviesse, perguntamos se lhe agradavam
cidades como as nossas, mas nosso Eduardo foi enfático ao negar o apreço às
grandes metrópoles.
“Não gosto
de cidades grandes, como São Paulo. Elas têm caos demais. Gosto de Montevidéu
porque consigo compreendê-la. Não se pode compreender uma cidade como São
Paulo. Por isso escolhi viver aqui e sempre para cá voltar”, disse.
Entreolhamo-nos pelo tempo em que o termo compreensão ressoou no ambiente.
Eduardo foi
se levantando com os presentes em mãos. Despedimo-nos com um cumprimento ainda
mais carinhoso que o da chegada. “Ainda vamos nos rever”, disse, por fim. “As
mãos da memória sempre trabalham por encontros assim”, quisemos entender.
Agradeceu com os olhos.
Agradecemos. Não como quando um livro termina por nos inspirar,
mas, quando um novo nos segura logo na primeira página. “Até breve”, sentimos.
Fonte: http://outraspalavras.net/
Nenhum comentário:
Postar um comentário