Palestina, dignidade rebelde
“A
Cicatriz”
Fotógrafa-ativista
francesa cobriu vinte anos de conflito sem imagens pirotécnicas de
fumaça e explosões. Ela retrata vida e quotidiano dos que resistem sob ocupação
Gaza está
outra vez sob bombardeio. Mas a imagem que recebemos novamente hoje – de uma
população civil sitiada, aterrorizada, à mercê das violentas ofensivas
militares israelenses – não é a que encontramos nos arquivos de Joss Dray,
fotógrafa e militante da causa palestina desde os anos 1980. Suas fotos
afirmam, ao contrário, a humanidade de um povo em resistência, “legítimo em sua
terra”.
Inúmeras
imagens circulam agora na internet, reproduzindo à exaustão as nuvens de fumaça
que se elevam por trás das casas da cidade. Gaza de longe – como em janeiro de
2009, quando os israelenses e fotógrafos do mundo inteiro iam à fronteira,
observar o espetáculo que produziam, ao cair, os mísseis da operação “Chumbo
Endurecido”.
Seria
inútil procurar este tipo de imagem entre as fotos de Joss Dray sobre a
Palestina. Desde o início da primeira Intifada (dezembro de 1987), a militante
que ela sempre foi quis enxergar e apresentar o povo palestino “de seu
interior”. “Não sou fotógrafa de guerra”, diz ela como preâmbulo. “Tenho
necessidade de encontrar as pessoas, sua humanidade, seu jeito de viver, sua
cultura”.
Como Joss
chegou à Palestina? Ela militava contra a guerra no Vietnã e, em posição
terceiro-mundista, contra o imperialismo e a colonização. “Era natural que
viesse à Palestina, era lógico”. A fotografia foi, antes de tudo, uma forma de
testemunhar as lutas dos anos 1970 em que ela se envolveu.
Um dia, em
1983, Joss telefona ao jornal palestino Al Yom Assabe’, que acabara de ser
criado em Paris. Engaja-se imediatamente como fotógrafa e editora de imagens. É
a época da guerra do Líbano, mas ela não é enviada em reportagem. “Não faltam
fotos de agência. Não vamos te enviar para lá. Vire-se”, dizem-lhe no jornal
quando, em 1987, no momento da comemoração dos quarenta anos do Estado de
Israel e do aniversário da Declaração
de Balfour, ela decide que é tempo de ir à Palestina.
“Rota entre
Ramallah e Naplus, 2001″
Um povo em sua terra
Ela parte
só, levando na mente a imagem gloriosa dos fedayin. Mas não é o que encontra
por lá. Chega a um país que não parece estar em guerra, onde se circula com
relativa facilidade. “Chegava-se ao aeroporto de Telaviv e se entrava em
Jerusalém sem problemas. O espaço entre Israel e a Cisjordânia estava completamente
aberto”.
Perturbada
pela distância entre a imagem idealizada dos combatentes, que ela guardava, e a
realidade, Joss descobre “um povo completamente legítimo em sua terra, que vive
numa espécie de quietude, de doçura, apesar da ocupação”. “Eram meados de
junho. Volto em outubro e percebo uma tensão crescente. Não compreendo bem o
que se passa, ainda. Ao regressar a Paris, percebo: é a primeira Intifada”.
Ser
fotógrafa é encontrar-se “no interior” com as pessoas, numa relação muito
estreita, para enxergar o que elas veem e olhá-las verdadeiramente. “Durante a
primeira Intifada, havia às vezes duzentos fotógrafos. Mas estavam todos por
trás do exército israelense. Eu era uma das raras do outro lado. Não havia
viajado para ‘testemunhar’ a situação, mas para narrar a resistência do povo
palestino.”
Joss Dray
fotografa o ambiente quase eufórico dos primeiros tempos da Intifada, o levante
de toda a Palestina no campo, nas cidades e vilarejos. Fotos de mulheres que
partem com alegria para a manifestação de sexta-feira. “Então, o exército
israelense passa a atirar sobre todos, ao azar, e todo o mundo começa a
recolher pedras. Você vê a passagem desta fase alegre ao sofrimento. Cada morto
é filho de todo mundo. Por exemplo, fotografo um homem assassinado, vindo de um
vilarejo para manifestar-se em Ramallah. Descobre-se de imediato quem é ele,
viaja-se ao local, organizam-se as homenagens, volta-se quarenta dias depois.
São um só: toda a cidade de Ramallah, todos os vilarejos”. Suas primeiras fotos
boas são feitas lá. Ela considera que só então torna-se fotógrafa.
“Campo de
Jenin, 2003″
Resistir é
Existir
A
resistência está em todos os lugares, especialmente na sombra, no coração das
famílias que ela retrata. “Os meninos vinham beijar sua mãe, à noite, e partiam
novamente para se esconder nas montanhas de madrugada. Eu fotografo a mãe que
sofre, que teme por seu filho, e também fotografo suas irmãs. Esse povo
palestino em toda a sua dimensão cultural, humana. Sua beleza”, acrescenta.
Era,
naquele tempo, “um povo sobrefotografado”. “A dança das pedras”1, muito
fotogênica, estava em todos os jornais. Mas não dava a verdadeira dimensão do
que representou esse levante. Fotografavam-se “os keffiehs e algumas bandeiras,
mas não se contava o significado de agitar uma bandeira: um crime, pelo qual
arriscava-se à prisão. Por isso, eles ficavam escondidos nas casas; não saiam
senão para as manifestações. Tenho uma série muito divertida, na qual as mulheres,
em grupo, tiram de trás de si uma bandeira e a desdobram para mim… Havia até
mesmo bandeiras que as crianças faziam com papelão, enfiadas num pedaço de pau
e desenhadas com lápis coloridos.”
Joss Dray
parou entre 1991 e 1993. “A Intifada se desgastava, minhas fotos também. Houve
um vácuo.” Ela voltaria após os Acordos de Oslo,
em 1994, para ver a chegada de policiais palestinos que vinham de Shatila, do
Líbano, da Tunísia, e eram acolhidos pela população.
Gaza se
transformava. Construíram-se grandes hotéis, as calçadas foram repintadas…
“Achei aquilo um pouco triste, mas pensei que era preciso, de qualquer maneira,
mostrar.” Pouco a pouco, a separação foi se instalando: grades, fronteiras, as
passagens tornaram-se cada vez mais estreitas, violentas e marcadas. “Ninguém
mais fotografava realmente, fiquei um pouco solitária.”
A segunda
Intifada
Nos campos
de refugiados no Líbano, Joss fotograva o empobrecimento terrível, a reclusão e
o abandono. Depois, vem a segunda Intifada, que começa em setembro de 2002. Ela
terá de se resignar a tornar-se fotógrafa de guerra? A solução escolhida é
continuar a testemunhar a experiência de vida dos palestinos, “em sua dignidade
e com o sentimento de estar em coerência consigo mesma. Tudo o que até então
estivera bem, apesar especialmente dos Acordos de Oslo – que serviram acima de
tudo para desumanizar a visão sobre o outro. Inclusive o olhar dos palestinos
sobre os israelenses.”
Joss Dray,
fotógrafa
A separação
entre palestinos e israelenses torna-se total. Como agir? Ela escolhe trabalhar
com as missões civis para a proteção do povo palestino, conduzindo pessoas,
procurando enxergar a Palestina com os olhos delas. “Evidentemente, era uma
Intifada armada. Porém, continuei a fotografar os que resistiam de outros
modos, em ações militantes. Em Jenin, por exemplo, revi as fotos que havia
feito durante a primeira Intifada. Tentei mostrar a força de resistência incalculável
de um povo que luta contra o esquecimento, além da destruição da sociedade, das
pessoas, que mantinham a mesma vontade de expressar sua dignidade e energia.”
– E hoje, como ela enxerga o prosseguimento de seu trabalho? Se retornasse a Gaza ou aos campos, o que Joss faria?
“Mezraa Sharquie 1988. O orgulho”
Gaza, a
maior ferida
“Meu filho
diz: ‘cresci com duas imagens da Palestina: a cicatriz e o orgulho’. A cicatriz
é a foto de uma jovem mulher com um olho ferido, exposta no Instituto do Mundo
Árabe, em Paris. O orgulho é a foto – muito publicada – de uma manifestação de
crianças, uma delas vestida de paletó”. Com este filho, produtor de cinema, ela
tem hoje o projeto de fazer um webdocumentário para apresentar uma geografia da
Palestina bem mais vasta (porque mental) que o território
confinado em que os palestinos estão hoje aprisionados. “Gostaria, é claro,
de utilizar meus arquivos, mas também de filmar, para que nos digam o que é,
hoje, fazer parte do povo palestino”. A primeira viagem que ela fará, assim que
possa, será para encontrar os refugiados
palestinos da Síria no
Líbano.
“Dizia-se,
de Gaza, que lá as pessoas sempre se levantavam, em primeiro lugar e sobretudo,
por serem as que mais sofrem. É la que continuam a sofrer, e o trabalho a
partir de meus arquivos remete novamente à sua história – a dos refugiados e a
das feridas de hoje”.
_____
1
Jean-Claude Coutausse, La danse des pierres, edições Denoël, 1990.
Imagens: Joss
Dray | Texto: Françoise Feugas | Tradução: Antonio
Martins e Inês Castilho
Fonte: http://outraspalavras.net/
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