Telaviv: assim se fabrica a guerra infinita
“Checkpoint”
entre a Cisjordânia palestina e territórios ocupados por Israel. “Na década
passada, populações foram separadas. Únicos encontros se dão em situação de
violência”, diz Lewy
Jornalista
judeu analisa: no fundo, Israel não deseja paz. Por isso, ocupa territórios,
segrega e alimenta fundamentalismo religioso baseado no desprezo ao outro
Israel não
deseja a paz. Nunca quis tanto que estivesse errado o que escrevo. Mas as
evidências se acumulam. Na verdade, pode-se dizer que Israel nunca desejou a
paz – uma paz justa, ou seja, baseada num acordo justo para ambos os lados. É
verdade que a saudação rotineira em hebreu é Shalom (paz) – shalom quando alguém
se despede e shalom quando alguém chega. E quase todo israelense dirá sempre
que deseja a paz, claro que sim. Mas ele não se refere ao tipo de paz que traz
justiça, sem a qual não há paz e não haverá paz. Os israelenses desejam paz,
não justiça; certamente nada que se baseie em valores universais. Nos últimos
dez anos, aliás Israel afastou-se até mesmo da aspiração de construir a paz.
Desistiu completamente dela. A paz desapareceu da agenda, seu lugar foi tomado
por ansiedades coletivas, fabricadas sistematicamente, e por questões pessoais,
privadas, que agora têm prioridade sobre todas as outras.
Os
israelenses que ansiavam pela paz aparentemente morreram há cerca de uma
década, depois do fracasso da reunião de Camp David em 2000, da disseminação da
mentira de que não há um parceiro palestino para a paz e, claro, do terrível
período da segunda intifada, encharcado de sangue. Mas a verdade é que, mesmo
antes disso, Israel nunca desejou realmente a paz. Nunca, nem por um minuto,
Israel tratou os palestinos como seres humanos com direitos iguais. Nunca viu
seu sofrimento como um sofrimento humano e nacional compreensíveis.
Também o
movimento israelense pela paz – se é que chegou a existir – morreu uma morte
lenta, em meio às penosas cenas da segunda intifada e à mentira da falta de
parceiros. Tudo o que restou foi um punhado de organizações tão empenhadas
quanto ineficazes, face às campanhas de deslegitimação montadas contra elas.
Logo, Israel foi deixada em sua postura isolacionista.
A evidência
mais esmagadora da rejeição da paz por Israel é, claro, o projeto das colônias
de ocupação da Palestina. Desde o início de sua existência, nunca houve um
teste mais seguro ou mais preciso para as verdadeiras intenções de Israel do
que esse empreendimento particular. Em linguagem clara: os construtores das
colônias desejam consolidar a ocupação, e quem deseja consolidar a ocupação não
deseja a paz. Esse é o resumo da ópera.
Colônia
israelense, construída em território palestino e separada por muro. Para Lewy,
“os construtores das colônias desejam consolidar a ocupação, e quem deseja
consolidar a ocupação não deseja a paz”
Considerando
que as decisões de Israel são racionais, é impossível aceitar que a construção
nos territórios e a aspiração pela paz possam coexistir mutuamente. Cada ato de
construção em colônias de ocupação, cada casa móvel e cada varanda transmitem
rejeição. Se Israel quisesse alcançar a paz através dos Acordos de Oslo,
teria ao menos parado, por iniciativa própria, de construir as colônias. O fato
de que isso não aconteceu prova que Oslo foi uma fraude, ou, na melhor das
hipóteses, a crônica de um fracasso anunciado. Se Israel desejava construir a
paz em Taba, em Camp David, em Sharm el-Sheikh, em Washington ou em Jerusalém,
seu primeiro passo teria sido acabar com toda ocupação nos territórios. Incondicionalmente.
Sem exigir nada em troca. O fato de Israel não tê-lo feito é a prova de que não
quer uma paz justa.
Mas as
colônias são apenas um dos indicadores das intenções de Israel. Seu isolamento
está entranhado bem mais fundo – em seu DNA, sua corrente sanguínea, suas
crenças mais primordiais. Lá, no nível mais profundo, está o conceito de que
esta terra está destinada apenas aos judeus. Lá, no nível mais profundo, está
entrincheirado o valor de “am sgula” — os escolhidos por Deus.
Na prática,
isso se traduz na noção de que, nesta terra, os judeus estão autorizados a
fazer o que aos outros é proibido. Esse é o ponto de partida, e não há como
chegar a uma paz justa a partir daí. Não há nenhuma maneira de alcançar uma paz
justa quando o nome do jogo é desumanização dos palestinos. Não há forma de
conseguir alcançar a paz quando sua demonização é martelada na cabeça das
pessoas dia após dia. Quem está convencido de que cada palestino é um suspeito
e quer “jogar os judeus no mar” nunca vai construir a paz com os palestinos. A
maioria dos israelenses estão convencidos de ambas as afirmações.
Soldado
israelense intimida e ameaça palestinos num checkpoint. “O único encontro entre
os dois povos é entre os ocupantes, que são armados e violentos, e os ocupados,
que são desesperados e também se voltam para a violência”
Na década
passada, as duas populações foram separadas uma da outra. O jovem israelense
médio nunca se encontrará com seu par palestino, a não ser durante seu serviço
militar (e, mesmo assim, apenas se servir nos territórios ocupados). Nem o
jovem palestino médio encontrará um israelense da sua idade, a não ser o
soldado que o hostiliza no checkpoint, ou invade sua casa no meio da noite, ou
o colono que usurpa sua terra ou queima seus bosques.
Em
consequência, o único encontro entre os dois povos é entre os ocupantes, que
são armados e violentos, e os ocupados, que são desesperados e também se voltam
para a violência. Foram-se os tempos em que palestinos trabalhavam em Israel e
israelenses iam fazer compras na Palestina. Foi-se o período de relações
meio-normais e um-quarto-iguais, que existiram por poucas décadas entre dois
povos que dividiam o mesmo pedaço de território. É muito fácil, nesse estado de
coisas, incitar e inflamar um contra o outro, espalhar medos e instigar novos
ódios sobre os já existentes. Essa é, também, uma receita certa de não-paz.
Foi assim
que um novo anseio israelense surgiu: o desejo de separação: “Eles ficam lá e nós
ficamos aqui (e lá também)”. Num momento em que a maioria dos palestinos –
avaliação que me permito fazer, após décadas de cobertura nos territórios –
ainda quer coexistência, mesmo que cada vez menos, a maioria dos israelenses
quer não-envolvimento e separação, mas sem pagar o preço. A visão de dois
estados ganhou adesão generalizada, mas sem qualquer intenção de implementá-la
na prática. A maioria dos israelenses é a favor, mas não agora e talvez nem
mesmo aqui. Eles foram treinados a acreditar que não há parceiro para a paz –
isto é, um parceiro palestino – mas há um parceiro israelense.
Infelizmente,
a verdade é quase o oposto. Os palestinos não-parceiros não têm mais nenhuma
chance de provar que são parceiros; os não-parceiros israelenses estão convencidos
de que são interlocutores. Começou então um processo em que as condições,
obstáculos e dificuldades impostas por Telaviv se amontoaram, mais um marco no
isolamento israelense. Primeiro, veio a exigência de acabar com o terrorismo;
em seguida, a demanda pela troca da liderança (Yasser Arafat visto como uma
pedra no caminho); e depois disso o Hamas tornou-se o obstáculo. Agora é a
recusa dos palestinos em reconhecer Israel como um Estado judeu. Israel
considera legítimo cada passo que dá – de prisões políticas em massa à
construção nos territórios –, enquanto todo movimento palestino é considerado
“unilateral”.
Palestinos
num curral, em checkpoint. Apartheid baseia-se na manipulação do conceito
religioso de “am sgula” — segundo o qual judeus são povo escolhido por Deus
O único
país sem fronteiras do planeta não quis, até aqui, delimitar sequer as
fronteiras que estaria pronto a aceitar num acordo. Israel não internalizou o
fato de que, para os palestinos, as fronteiras de 1967 são a mãe de todos os
acordos, a linha vermelha da justiça (ou justiça relativa). Para os
israelenses, elas são “fronteiras suicidas”. Essa é a razão pela qual a
preservação do status quo tornou-se o verdadeiro alvo, o objetivo primordial da
política de Israel, quase seu tudo ou nada. O problema é que a situação
existente não pode durar para sempre. Historicamente, poucas nações aceitaram
viver sob ocupação sem resistência. E também a comunidade internacional estará
apta, um dia, a proferir um pronunciamento firme, acompanhado de medidas
punitivas, sobre este estado de coisas. Segue-se que o objetivo de Israel é
irrealista.
Desconectada
da realidade, a maioria dos israelenses mantém seu estilo de vida normal. A
seus olhos, o mundo está sempre contra eles, e as áreas de ocupação à sua porta
estão fora de sua esfera de interesse. Quem ousa criticar a política de
ocupação é rotulado de anti-semita, cada ato de resistência é percebido como
uma ameaça existencial. Toda a oposição internacional à ocupação é lida como
“deslegitimização” de Israel e como um desafio para a própria existência do
país. Os sete bilhões de pessoas do mundo – a maioria das quais contra a
ocupação – estão erradas, e seis milhões de judeus israelenses – a maioria dos
quais apóia a ocupação – estão certos. Essa é a realidade na visão do
israelense médio.
Some a isso
a repressão, a ocultação e a dissimulação, e você tem uma outra justificativa
para o isolamento. Por que alguém deveria lutar pela paz, desde que a vida em
Israel seja boa, a calma prevaleça e a realidade se mantenha oculta? A única
maneira de a Faixa de Gaza, sitiada, lembrar as pessoas de sua existência é
atirando foguetes, e, atualmente, a Cisjordânia só entra na agenda quando há
sangue derramado por lá. Da mesma forma, o ponto de vista da comunidade
internacional só é levado em conta quando tenta impor boicotes e sanções, que
por sua vez geram imediatamente campanhas de autovitimização cravejadas de
contundentes – e, às vezes, também impertinentes – acusações históricas.
Este é,
pois, o quadro sombrio. Não contém um raio de esperança. A mudança não vai
acontecer por si mesma, a partir do interior da sociedade israelense, caso
continue a se comportar como se comporta. Os palestinos cometeram mais do que
um erro, mas seus erros são marginais. A justiça de base está do seu lado, e o
isolamento de base é o limite dos israelenses. Eles querem ocupação, não paz.
Tenho a
esperança de estar errado.
Tradução:
Inês Castilho
Fonte: http://outraspalavras.net/
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