Para ir
além do alimento-mercadoria.
Livro
propõe alternativas a uma indústria alimentar que padronizou dietas, disseminou
agrotóxicos e “aditivos”, reduziu comida a consumo e não venceu a fome
O sistema
alimentar moderno transformou radicalmente a estrutura social, econômica,
política e cultural das sociedades. Inspirada na lógica industrial, os
objetivos estão centrados numa economia de baixo custo e grande escala,
projetada com tecnologia e eficiência para oferecer “mais por menos” ao
consumidor final. Essa equação se traduz em mais produtos na prateleira a um
preço cada vez menor de produção, que beneficia exclusivamente os grandes
fabricantes e redes varejistas multinacionais.
Em O Fim
dos Alimentos (Editora Eevier, à venda na internet), o jornalista norte-americano Paul
Roberts descortina o cenário da economia alimentar, com um panorama inédito que
reúne subsídios para compreender sintomas que vão da obesidade ao declínio das
refeições preparadas em casa. Nutrida por desigualdade e injustiça, esta
economia reproduz um ciclo tendencioso e vicioso, em que a demanda do
consumidor, seus desejos e interesses implacáveis são utilizados como
justificativa para manter um modelo de produção, consumo e distribuição
questionável.
A
concorrência do setor varejista espreme ao máximo os lucros da cadeia produtiva
para se manter no topo da preferência de seu cliente. Este cliente, por sua
vez, parece também ter sido moldado geneticamente, culturalmente e socialmente
para absorver mais calorias em nome da conveniência e da falta de tempo que o
próprio sistema o enreda. Quanto menos tempo se tem para cuidar da alimentação,
mais as empresas alimentícias lucram com inovações que facilitam um estilo de
vida em que o trabalho ocupa a maior parte do dia e cada vez exige mais, assim
como a cadeia produtiva precisa ser cada vez mais eficiente.
A
antropóloga Mary Douglas, no livro O Mundo dos Bens (Editora UFRJ, à venda na internet) supõe que a capacidade essencial do
consumo é dar sentido. Trata-se de um sistema de significação, e a verdadeira
necessidade que supre é a simbólica. Para cumprir com excelência tal missão, as
verbas de marketing e publicidade dão conta de explorar a experiência
alimentar, abarcando os valores de uma cultura ou sociedade. A culpa, a
insegurança e a vida corrida ganham significado no ato de consumir. No final
das contas, quem ganha com tanto tempo e energia desprendidos em prol de um
modelo capitalista que consome, esvazia?
Roberts
indica um caminho em que gigantes como a Nestlé e o Mc Donald’s mais parecem
maquinar contra a humanidade, exaurindo suas forças, como se as pessoas e os
recursos fossem infinitos, ou substituíveis infinitamente.
A
industrialização da refeição começa no campo epistemológico ao conceituar
alimento como mercadoria, sem considerar, como aponta o autor, que o alimento
em si não é fundamentalmente um fenômeno econômico. “O produto subjacente – o
que comemos – nunca na verdade se conformou aos rigores do modelo industrial
moderno”. No entanto, a crise alimentar, ele alerta, é fundamentalmente
econômica. A partir desta constatação, podemos pensar nas outras dimensões em
que essa crise atinge, como a perda do saber e fazer tradicionais. O jornalista
sugere que as relações familiares, a identidade cultural e diversidade ética
estavam intimamente relacionadas com o ato de preparar e consumir comida.
Agora, esta função está a cargo de grandes corporações.
As culturas
alimentares que tratavam a culinária como elemento central para a manutenção da
estrutura social e da tradição estão lentamente sendo trocadas por uma cultura
alimentar globalizada. “A refeição social é obsoleta e a arte da cozinha é
feitichizada em livros de receitas e programas culinários”.
Os
alimentos foram dissecados em sua essência e transformados em insumos. O
dicionário Houaiss define o verbete como “bem utilizado ou transformado em
outros produtos pelo processo produtivo de uma empresa; ou fator de produção”.
A etimologia traz a ideia de “tomar, invadir; despender, gastar”. Exatamente
como faz a marcha da economia alimentar.
Roberts
explica que o alimento é tão impróprio à produção em massa que tivemos de
reengendrar plantas e animais para torná-los mais eficientes economicamente. E
para corrigir os efeitos colaterais, ergueu-se uma indústria de medicamentos,
flavorizantes, aditivos e fertilizantes em prol da qualidade, percebida na
textura e no sabor de quem compra. Tudo pode ser constituído. O crescimento
desproporcional dos frangos compromete a umidade da carne, por isso, injeções
de salmora e outras substâncias garantem o aspecto natural. Todo o esforço da
indústria está em parecer caseiro, artesanal e natural, como se estivesse sido
feito em casa, na hora. Em nome dessa naturalidade, a saúde das plantas, dos
animais, do solo e do homem podem estar ameaçadas.
A indústria
construiu uma reputação baseada na capacidade de produzir comida suficiente
para abastecer a população com segurança. Com a análise de Roberts, observamos
que esta relação de confiança é sustentada com altos investimentos em
tecnologia, mas que não são suficientes para impedir práticas fraudulentas –
como colocar carne de cavalo em lasanhas, hambúrgueres e kebabs no Reino Unido;
e adicionar ureia no leite do Rio Grande do Sul, ambos acontecimentos do
primeiro semestre de 2013. Para o autor, o mais grave é que apesar de toda
eficiência e abundância, o sistema alimentar moderno não chegou nem perto de
erradicar a fome. Roberts suspeita que “há algo de muito errado quando ninguém
é produtor, quando ninguém é cozinheiro, e quando o mais próximo que se chega
de produzir uma refeição é no buffet de restaurante a quilo”.
A economia
alimentar cresceu num contexto da Segunda Guerra Mundial e Revolução
Industrial. Aliou-se a fome com a vontade de comer. Num primeiro estágio, a
produção industrial caiu como uma luva, era sinal de fartura e progresso. Mas
esta máquina alimentar já indica sinal de desgastes. Esta iminente crise será a
mais problemática porque a produção ocorre num contexto global, onde os custos
são mais baixos. Entretanto, torna-se vulnerável às intempéries como meios de
transportes ou capacidade de exportadores. Outro fator apontado no livro é a
resistência à mudança. Por isso, sua manutenção depende de investimento
contínuo em produção. Por ser tão bem arranjado, uma mudança genuína deve
partir de fora da lógica predominante. Caso contrário, as alternativas são
incorporadas e reinventadas, como os alimentos orgânicos e os produtos
saudáveis. Ademais, a propaganda de bom preço e qualidade esconde muitos dos
verdadeiros custos. Os consumidores, peça-chave que roda essa engrenagem
demonstra pouca inclinação a prestar mais atenção ao que come.
Roberts
cita iniciativas em prol de um modelo alternativo, como levar a agricultura aos
ambientes urbanos, comida de verdade nos refeitórios da escola e técnicas
culinárias na sala de aula. No Brasil, a Lei de Alimentação Escolar (11.497)
determina que a Educação Alimentar e Nutricional perpasse o currículo e o
processo de ensino-aprendizagem. Diante do panorama exposto, os educadores
deveriam tomar parte na discussão sobre o sistema alimentar, considerando não
apenas a saúde, mas a complexidade que esta economia engendra. Faz-se
necessário uma narrativa abrangente, interdisciplinar e transdisciplinar sobre
o que se come, que pode se construída na base da educação, assim como a
indústria busca novos consumidores desde o ventre materno. Nos três primeiros
capítulos, o livro trata de três grandes mudanças na relação de produção, distribuição
e consumo.
Fome de
progresso
O autor
inicia a obra situando o leitor a respeito da evolução do homem em busca de
alimentos. A carne e, posteriormente a agricultura, foram cruciais para
desenvolvimento humano e fixação na terra. Desde os primórdios da sociedade, a
segurança alimentar se apresentou como uma questão militar e política. A
capacidade de produzir grãos caminha com o incremento na produção de carne. A
partir de 1500 e 1700 a redescoberta da carne teve papel fundamental para o
crescimento da população mundial. Durante séculos, a fome destruiu de forma
eficaz a capacidade mental, social e produtiva de populações inteiras. A
constante ameaça da escassez versus o crescimento populacional impulsionou
inovações e tecnologias, que afastaram o fantasma da fome; e ampliou a baixa
estatura provocada pela desnutrição.
Na visão do
autor, o globalismo, ou o sistema alimentar internacional foi gerado sob a
ideologia do livre-comércio. A fome transformou o alimento em mercadoria e
desencadeou uma abundante produção de comida. Os Estados Unidos, berço desta
superabundância, o congresso criou um vasto sistema de apoio a produção de
alimentos. Segundo o economista de Havard Ray Goldberg, o sistema foi “o maior
serviço de utilidade quase-pública do mundo”.
A
padronização tornou-se um princípio norteador da produção. Em nome desse padrão
de qualidade, o alimento é esmiuçado, descaracterizado e reconstituído. O
agricultor moderno concentrou seus esforços em uma só cultura, como milho e
soja, base para uma infinidade de produtos; ou espécie de gado. Em 1957,
Goldberg e John Davis sugeriram o termo agronegócio (conjunto de operações da
cadeia produtiva, do trabalho agropecuário até a comercialização/Houaiss) ao
invés de agricultura (trabalho do campo, arte de cultivar).
Conforme o
jornalista “a uniformidade e a especialização haviam sido os marcos da economia
alimentar moderna em seus primórdios; a consolidação e a desigualdade seriam
seu legado mais duradouro”.
É muito
fácil hoje
A etapa
seguinte da economia alimentar foi protagonizada pelos fabricantes de
alimentos. O agronegócio resultou em menos gastos para os consumidores; e os
produtos de conveniência resultaram em menos tempo gasto no preparo das
refeições. A Nestlé é o principal exemplo de Roberts por ser a líder mundial da
indústria alimentícia; e ser alvo de inúmeras polêmicas. Nas sociedades
industrializadas, o tempo se converteu em uma valiosa mercadoria. Empresas como
a suíça Nestlé passaram a atender, além da demanda de preço, a praticidade. A
fabricação de alimentos se enfileirou na esteira do modelo fabril e
automobilístico, com grande volume, padronização e variedade. Interessante
destacar que o paladar é conservador. O historiador Enrique Renteria (2007)
afirma que essa importância dada à alimentação é surpreendente visto que é na
escolha do que comemos que mostramos menos ousadia. Da mesma forma, Roberts
ressalta que o sucesso de empresas como a Nestlé e o Mc Donald’s assinala um
dos desenvolvimentos mais radicais e potencialmente inquietantes da história da
economia alimentar, pois os seres humanos são de fato inerentemente
“conservadores em se tratando de alimentos”.
O sistema
de produção, distribuição, divulgação e consumo de alimentos ganhou terreno à
medida que o comensal perdeu a capacidade de preparar e entender sua própria
comida. Tem o mérito de instigar o apetite por novidades embaladas e com
rótulos indecifráveis. As mudanças na forma de comer foram acolhidas ou
consideradas como um mal necessário, pois permitiu o controle maior do tempo.
Mas ao longo do processo de industrialização do comer os consumidores se
mostram cada vez mais dispostos a aceitar produtos sintéticos ou processados. E
para convencer o cliente desta “necessidade” a publicidade e o marketing são
ostensivos. O autor informa que a indústria alimentícia americana gasta cerca
de US$ 33 bilhões por ano, atrás apenas do setor automobilístico. Além da
comunicação, o setor investe em analistas de diversas áreas como antropologia e
psicologia. Até 2030, a previsão do tempo de cozinha ideal deve ficar entre 5 a
15 minutos. O futuro do alimento, adverte Roberts, é ser um acessório. O
sucesso desse modelo se baseia no declínio contínuo da refeição à mesa como uma
parte significativa da cultura.
A multidimensionalidade
da alimentação (Fischler, 1995) é reduzida a uma mercadoria, desprovida de sua
essência, mas enxertada de sentido para consumidor, com informações angariadas
em pesquisas de comportamento. O relatório anual do Mc Donald’s, de 1994,
avalia que se deve monitorar as mudanças nos estilos de vida dos consumidores e
intercepta-los a cada vida. Não é tão difícil monitorar quando as relações
também se tornam padronizadas e previsíveis; e a agenda de compromissos
abarrotada é uma angústia universal.
Compre um e
leve outro grátis
A terceira
etapa da cadeia produtiva alimentar é ainda mais cruel e espreme produtores e
fabricantes contra suas margens de lucro. Quem dá as cartas são as grandes
redes varejistas com operações internacionais. Na liderança está o Wal-Mart,
tão demonizado quanto a Monsanto, a Nestlé e o Mc Donald’s. Os fornecedores
escolhidos são obrigados a praticamente zerar o lucro para entregar produtos
com qualidade, uniformidade e volume. Qualquer irregularidade, isso inclui
verduras e legumes, os alimentos/produtos são devolvidos e o fornecedor
descredenciado. O Wal-Mart inovou a oferecer descontos diários a sua clientela.
Para isso, reduziu os estoques internos, pressionou fabricantes que por sua vez
cobraram mais eficiência dos produtores. Em troca, o volume de vendas em
contraponto com uma necessidade constante de inovação e investimentos para
manter a produção em patamares elevados. “A cultura alimentar é definida pelo
preço, com base no valor intrínseco e no tamanho da porção e num sistema de
produção global tão enxuto e just in time que é ao mesmo tempo propenso a
sofrer contratempos”, afirma o autor, se referindo a exigência de perfeição. Os
processadores de carne foram as primeiras vítimas do grande aperto varejista.
Daí para se obter frangos em 40 dias foi uma trajetórias de demandas baseadas
em custo e eficiência. Entretanto, os mercados mais promissores estão nos
países emergentes e em desenvolvimento, que enfrentam desafios em termos de
segurança alimentar, bem como de estrutura como ferrovias, depósitos e
infraestrutura para distribuição de produtos. Até quando a pressão por preço
vai nortear a produção, a distribuição e o consumo, quando estamos lidando com
mercadorias forjadas a partir de recursos finitos, como o solo, a água, os
animais?
Fonte: http://outraspalavras.net/