Ditadura & Grandes Empresários: outro caso emblemático
Cubatão,
anos 1970: síntese do modelo do regime para setor químico, cidade foi
considerada “a mais poluída do mundo”
Em sintonia
com governos militares, floresceu, após 1964, indústria química dependente e
devastadora. Seus “capitães” ajudaram a financiar tortura
Há 50 anos
o comando das Forças Armadas perpetrava golpe de Estado para instaurar a
ditadura no Brasil, que se prolongaria por 21 anos. Também há meio século, em
junho de 1964, era criada a Abiquim, Associação Brasileira da Indústria
Química.
É público e
notório que as Forças Armadas agiram com o apoio e a serviço dos interesses da grande
burguesia – os donos das principais indústrias, dos bancos, da grande mídia
empresarial e das grandes propriedades rurais – e do imperialismo – governo dos
Estados Unidos e empresas daquele País com interesses no mercado brasileiro.
A Abiquim
congregou, desde o início, as indústrias químicas nacionais e estrangeiras, que
aqui já estavam instaladas desde os anos 1920. Permitiu, assim, articular os
interesses destas corporações e apresentá-los aos governos da ditadura para
obter financiamento e vantagens desde os primeiros meses do regime autoritário.
É já
fartamente comprovado o engajamento das principais indústrias químicas,
plásticas e farmacêuticas no apoio ao golpe de abril de 1964 e à ditadura que
se seguiu. O excelente documentário “Cidadão Boilesen”, lançado em 2009 e
dirigido pelo cineasta Chaim Litewski, mostra a estruturação e o financiamento
por empresários e banqueiros paulistas da OBAN (Operação Bandeirantes), centro
de investigações e torturas montado pelo Exército brasileiro em 1969 para
combater organizações de esquerda que confrontavam o regime ditatorial e que
geraria, pouco tempo depois, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de
Informação do Centro de Operações de Defesa Interna). A OBAN significou o poder
repressivo comandado e financiado diretamente pelos donos do capital, sem
mediações, e executado pelos agentes fardados do Estado, com inteligência da
CIA, a central de espionagem do governo dos Estados Unidos.
O caso de
Henning Boilesen, retratado no documentário, é exemplar. Dinamarquês
naturalizado brasileiro, trabalhou durante 19 anos no grupo químico Ultra,
tendo sido presidente da Ultragaz. Aproximou-se de grupos militares e
paramilitares e, sádico, costumava acompanhar sessões de tortura na OBAN.
Segundo
Elio Gaspari, em seu livro “A ditadura escancarada”, a primeira reunião
organizada para captação de recursos para a OBAN foi convocada por Delfim
Netto, então ministro da Fazenda, e contou com a participação de 15 empresários
e banqueiros, como Gastão Bueno Vidigal, dono do banco Mercantil de São Paulo,
que era também presidente do clube Paulistano. Lá, às quintas-feiras, costumava
promover almoços com empresários e não raro convidava Delfim Netto para
apresentar análises de conjuntura econômica. Ao final da palestra, eram
recolhidas as colaborações para a OBAN.
Pery Igel,
dono do Grupo Ultra e patrão de Boilesen, foi certamente um dos mais destacados
financiadores da OBAN, ao lado de Paulo Ayres Filho, dono da Pinheiros Produtos
Farmacêuticos e de executivos das montadoras de automóveis estadunidenses Ford
e General Motors. Boilesen é figura paradigmática, triste representação de
outras tantas dezenas de empresários que apoiaram e financiaram a ditadura, e
que até hoje permanecem anônimos.
Boilesen
foi assassinado em 15 de abril de 1971, em São Paulo, numa ação conjunta
envolvendo militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MRT (Movimento Revolucionário
Tiradentes). Delfim Netto compareceu ao enterro e levou consigo Roberto Campos,
amigo de ambos.
Delfim
participou com destaque de todos os governos ditatoriais e foi signatário do
AI-5 – ato do governo militar decretado em dezembro de 1968 que fechou o
Congresso Nacional e permitiu ao regime ditatorial acirrar a repressão. Delfim
foi o operador do modelo econômico da ditadura, num contexto em que as
corporações industriais dos Estados Unidos buscavam expandir seu domínio sobre
a América Latina para barrar o avanço da influência política dos países
socialistas, liderados pela União Soviética.
O modelo
econômico da ditadura potencializou os desequilíbrios estruturais herdados do
período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração de
renda. O Estado tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado pelas
transnacionais e aparato repressivo para sufocar os conflitos sociais e
políticos daí decorrentes.
Heranças
deste modelo sentidas até hoje são a generalizada corrupção, o arrocho salarial
– que o Movimento Sindical procura enfrentar através da política de valorização
do Salário Mínimo e das conquistas salariais nas negociações coletivas – e a
intensa rotatividade de trabalhadores gerada pelo fim da lei de estabilidade no
emprego, em 1966, e que atinge hoje níveis alarmantes em todos os setores
econômicos, incluindo a indústria plástica e de cosméticos, dentro do segmento
químico.
A ditadura
legou uma indústria química estruturalmente dependente de capitais e de insumos
estrangeiros. Apenas em 2013, o déficit comercial da indústria química para
fins industriais, representada pela Abiquim, alcançou 32 bilhões de dólares. E,
no mesmo ano, a indústria química, plástica e farmacêutica, remeteu ao exterior
3,6 bilhões de dólares a título de lucros, dividendos e pagamento de
empréstimos às suas matrizes, localizadas, majoritariamente, nos Estados Unidos
e na Europa.
Além disso,
a política agrícola da ditadura, pela subordinação da economia nacional aos
interesses do capital estrangeiro, impôs ao Brasil a “revolução verde” no
campo, o que deu as bases para o agronegócio comandado pelos grandes produtores
de commodities, como soja e milho, pelas transnacionais químicas fabricantes de
agrotóxicos e pelas corporações que comercializam as exportações. A ditadura
nos legou uma agricultura dependente de quantidades cada vez maiores de
agrotóxicos-venenos que afetam a saúde do solo, dos trabalhadores rurais e dos
consumidores.
De forma
trágica, a ditadura legou centenas de trabalhadores e sindicalistas torturados,
mortos e desaparecidos. 50 anos depois do golpe, permanecem impunes os
assassinos de Olavo Hanssen e Virgílio Gomes da Silva, mártires da categoria
química, símbolos que sintetizam a devastação provocada pela repressão no meio
sindical brasileiro.
Olavo era
trabalhador da Quimbrasil e sócio do Sindicato dos Químicos do ABC, quando foi
capturado pela repressão em 1 de maio de 1970. Levado à OBAN, foi morto sob
tortura, aos 30 anos de idade. Virgílio, nascido no sertão do Rio Grande do
Norte, veio para São Paulo como retirante, cumprindo a sina de tantas
trabalhadoras e trabalhadores químicos. Militante do Sindicato dos Químicos de
São Paulo desde meados da década de 1950, atuando na região de São Miguel
Paulista, zona leste da capital, organizou os trabalhadores e liderou greves,
sobretudo na Companhia Nitro Química Brasileira. Foi preso por alguns dias em
1964, quando o Sindicato sofreu intervenção e, a partir de 1967, passou a
integrar a ALN, liderada por Carlos Marighella. Participou de diversas ações
armadas, culminando com o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, em
setembro de 1969, do qual foi o comandante militar. Duas semanas depois, foi
capturado pela repressão e levado à OBAN, tendo sido torturado e assassinado em
29 de setembro, aos 36 anos de idade. Mais um brasileiro, jovem, da classe
trabalhadora, militante sindical, assassinado pela ditadura. Seu corpo jamais
foi encontrado.
A Comissão
Nacional da Verdade, instalada em março de 2012, já manifestou que pretende
investigar os rastros do financiamento da ditadura por banqueiros e
industriais, especialmente da OBAN. Se assim de fato o fizer, legará um serviço
inestimável ao Brasil, sobretudo aos que hoje enfrentam os mesmos grupos
econômicos forjados e impulsionados pelo Estado repressor da ditadura.
Em nome da
memória e da verdade, a indústria química deveria manifestar-se sobre este
período, aproveitando o cinquentenário da ABIQUIM. Ou ser instada a fazê-lo
pela Comissão, que entregará ao final deste ano relatório de seus trabalhos
para a Presidenta Dilma Rousseff.
O silêncio
e a omissão, hoje, perpetuam a impunidade e mantêm sobre todas as indústrias
químicas a suspeita de cumplicidade com práticas já comprovadas que pesam sobre
empresas específicas.
Fonte: http://outraspalavras.net
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