Os 20 anos do genocídio em Ruanda, o maior massacre da humanidade apóso fim da 2ª. Guerra Mundial
No dia 7 de
abril de 1994, começaram os 100 dias mais ferozes da história daRuanda e,
talvez, da humanidade inteira depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Por
mais de três meses, perpetrou-se um massacre sistemático que o mundo não soube
prever nem enfrentar, muito menos parar.
O detonador
da explosão de horror que resultou em décadas de conflito entre as etnias hutu
e tutsi foi um atentado: no dia anterior, haviam sido mortos o presidente
ruandês, Juvénal Habyarimana, e burundês, Cyprien Ntaryamira, quando
foi derrubado o seu avião que estava aterrissando no aeroporto da capital
ruandesa, Kigali. Com eles morreram dois ministros doBurundi, cinco
funcionários da Ruanda e os três membros da tripulação francesa do
avião.
Os dois
presidentes voltavam de uma cúpula de chefes de Estado da África Central,
realizada em Dar-es-Salaam, na Tanzânia, e dedicada justamente à
guerra que, há anos, via a contraposição entre os hutu e os tutsi que vivem nos
dois países.
Não foram
suficientes para parar o conflito nem mesmo os acordos assinados no dia 4 de
agosto do ano anterior, em Arusha, também na Tanzânia, que previam um
governo de transição na Ruanda, também com expoentes da Frente
Patriótica Ruandesa (FPR), o grupo armado dos tutsi, liderado pelo atual
presidente Paul Kagame.
Nenhuma
investigação internacional jamais determinou quais foram os responsáveis pelo
atentado. Mas a violência transbordou imediatamente, antes na
capital Kigali e depois no resto da Ruanda, contra os tutsi e os
hutu moderados.
Os soldados
hutu da guarda presidencial se lançaram contra o bairro de Kigalionde
estavam alojadas as milícias da FPR, que consideravam como os autores do
atentado. Entre as primeiras vítimas, estavam dez soldados das forças de paz
belgas da UNAMIR, a missão da ONU que começou em outubro do ano
anterior. Os militares belgas foram capturados quando tentavam proteger a fuga
da primeira-ministra, Agathe Uwilingiyimana, também ela morta, assim como
outros expoentes do governo.
Por 100
dias, centenas de milhares de mulheres e de homens, de idosos e de crianças,
foram trucidados em todas as localidades, durante uma caçada humana
aterrorizante. Um ano depois, também foi atroz a vingança dos tutsi que
chegaram ao poder. No campo de Kibeho, milhares de hutu foram mortos,
incluindo mulheres e crianças, enquanto, em Kigali, o novo governo
reivindicava “o direito de separar os refugiados dos autores do genocídio”.
As forças
da ONU, depois de terem assistido, impotentes, ao primeiro e aterrorizante
ataque, conseguiram resgatar milhares de crianças, muitas vezes encontradas ao
lado dos cadáveres das mães. Aquelas horas marcaram para sempre a memória de
quem as viveu. Aquelas crianças não falavam, não choravam, algumas estavam
enlouquecidas. Também vacilou a razão daqueles que fizeram o máximo para tornar
aquele horror, embora minimamente, menos cruel ou daqueles que tiveram que
relatá-lo.
Um aspecto
do conflito entre hutu e tutsi, populações de grande maioria católica, não pode
ser calado: o do envolvimento de muitos religiosos. Desde o início, o sangue
marcou a Igreja ruandesa muitas vezes com a cor do martírio, mas às vezes – e é
algo que ainda surpreende – manchando mãos culpadas.
Não por
acaso, recebendo os bispos ruandeses justamente nessa semana, o Papa
Francisco recordou os “tantos sofrimentos e feridas, ainda longes de serem
cicatrizadas” e os exortou a “seguir resolutamente em frente, testemunhando
incessantemente a verdade”, ressaltando que “a Igreja tem um lugar importante
na reconstrução de uma sociedade reconciliada”.
Uma
impressão amarga se difundiu nas consciências naquela primavera de 1994. Mas a
comunidade internacional não captou imediatamente o assustador porte dos
acontecimentos. O Conselho de Segurança da ONU se limitou a solicitar
que o então secretário-geral, Boutros Boutros-Ghali, tomasse “as medidas
necessárias para assegurar a segurança” dos cidadãos estrangeiros na Ruanda.
Uma década
depois, Kofi Annan, o sucessor de Boutros-Ghali, que em 1994 era
responsável pelas missões militares da ONU, admitiu, ele mesmo, que tinha
subestimado a situação. Assim como, um ano depois, em julho de 1995, as forças
de paz francesas da ONU demonstraram ser impotentes diante de outro
genocídio, o de Srebrenica, na Bósnia e Herzegovina.
Além disso,
nem mesmo a trágica história balcânica realmente envolveu o norte rico e
poderoso do mundo, onde se viviam os anos do fim do bipolarismo leste-oeste com
um alívio que as décadas posteriores se encarregariam de demonstrar que era
infundado.
O que
estava sendo preparado e o que depois aconteceu nos Bálcãs e na
região dosGrandes Lagos pegou despreparada a comunidade internacional. No
entanto, aquelas imagens, aquelas notícias de massacres, de campos de
concentração que viam encadeados homens concretos e a própria dignidade do
homem, valas comuns onde se enterravam cadáveres e a própria humanidade, não
eram novas.
Não eram
tão inéditas a ponto de parecerem incríveis. Acontecia de novo, como acontecera
50 anos antes na Europa. A imprensa propunha evidências cruas e
ressuscitava memórias dolorosas. Mas essa insistência da memória não soube se
tornar compaixão ativa, reflexão atenta, vigilância solícita.
Declinava,
entregando os seus horrores ao duro julgamento da posteridade, um século
marcado pelas atrocidades, o século que inventara os campos de concentração, as
limpezas étnicas, os genocídios sistemáticos, que tinha proposto a epidemia
recorrente dos totalitarismos, que devastara a fisiologia das nações com a
patologia dos nacionalismos, que havia transformado a identidade étnica na
máscara zombeteira do racismo.
Vinte anos
depois, nesse início do milênio, aqueles monstros ainda estão presentes e
muitas vezes são triunfantes. “Nunca esqueceremos que mais de 800 mil pessoas
inocentes foram selvagemente assassinadas. Prestamos homenagem à coragem e à
capacidade de recuperação dos sobreviventes”, disse o secretário-geral
da ONU,Ban Ki-moon, que no dia 7 de abril estará em Kigali para
a cerimônia de comemoração.
Ban
Ki-moon elogiou “a determinação dos ruandeses para regenerar o seu país e
lançar as bases para um futuro seguro e próspero”. Porém, acrescentou que a
batalha não para por aí, porque é preciso continuar agindo para impedir outros
horrores semelhantes, particularmente na região dos Grandes Lagos, “onde o
impacto do genocídio ainda é sentido”.
O nosso
passado, o nosso ontem mais recente, o nosso hoje são iguais. Imagens
idênticas, notícias idênticas servem de testemunhas de acusação para aqueles
que usam a identidade das nações como uma espada contra as minorias étnicas, ou
sociais, ou religiosas, como um pé de cabra para arrombar os cofres da história
e para lhes roubar a memória, para aqueles que mistificam os povos com um
chamado progresso sem direitos, com pacificações apenas supostas, por serem sem
justiça e sem verdade.
Ban
Ki-moon tem razão: um aniversário é importante para fazer memória. Mas uma
memória que não ensina é apenas um formalismo inútil.
Publicado
originalmente no L’Osservatore
Romano.
Fonte: www.diariodocentrodomundo.com.br
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