A mais-valia relativa da polícia: sobre repressão e controlo social
Garantir um
policiamento dos cidadãos sem sangue, suor e lágrimas, mas sim com sorrisos e
até agradecimentos pela civilidade demonstrada corresponde a uma política que
pretende fazer mais com menos. Por Passa Palavra
1. Na sua
obra magistral O Capital, Karl Marx estabelece a distinção entre mais-valia
absoluta e mais-valia relativa, dois conceitos essenciais na análise da evolução
dos sistemas e das relações sociais de produção no capitalismo. A primeira tem
como base o prolongamento do dia de trabalho, correspondendo, digamos, a uma
forma bruta e pouco sofisticada de se garantir o aumento da mais-valia (própria
das indústrias intensivas, sweatshops a título de exemplo). A segunda, pelo
contrário, requer a profunda alteração do próprio modo de produção, visando a
elevação da força produtiva do trabalho e, dessa maneira, a diminuição do tempo
necessário à sua reprodução. Em suma, aplicadas novas tecnologias, consegue-se
mais com menos força de trabalho. O objetivo deste artigo é analisar o processo
de controlo social e de repressão à luz destes dois conceitos, habitualmente
usados para esferas de produção fundamentalmente distintas. A relevância do
recurso a esta interpretação permite-nos não só conceder uma maior importância
à logística policial como, em paralelo, observar nos seus novos meios de
atuação não a diminuição do seu espaço de intervenção mas sim o aumento das
suas capacidades.
2. Tal
aumento assinala, segundo Gilles Deleuze, a passagem de sociedades
disciplinares a sociedades de controlo. As últimas, nas suas próprias palavras,
“funcionam já não por encerramento, mas por controlo contínuo e comunicação
instantânea” [1], ou seja, ao invés de se pautarem por formas de coação direta,
onde a figura da autoridade é absolutamente visível e identificável, o controlo
social aposta na indução de comportamentos, delegando-se no próprio indivíduo o
exercício de autoridade sobre a sua própria pessoa. Desta forma, aquilo que
outrora requeria o uso do cassetete passa, idealmente, a ser cumprido mediante
a mera sugestão. Importa mencionar que se trata de um regime que não dispensa a
repressão (tal como a Apple não dispensa o operariado chinês da Foxconn) mas
sim que tenta diminuir ao máximo a sua utilização. A acontecer, esta será,
contudo, violenta e sem piedade, bem ao estilo do BOPE.
3. Importa
destacar, em primeiro lugar, que não estamos mais perante (se é que alguma vez
estivemos) um conjunto de atividades exercidas sob os auspícios do Estado. O
receituário neoliberal parece assim expandir-se às funções policiais e
securitárias, frequentemente definidas como uma espécie de reserva, livre do
toque da mão invisível do mercado. Embora com competências distintas de país
para país, a atividade das empresas de segurança evidencia, pouco a pouco, como
os Estados abdicaram de forma consciente e voluntária do exercício do monopólio
da violência legítima, numa estratégia que está longe de constituir algo de
inédito na história. Antes da aplicação da linha de montagem em larga escala, o
magnata industrial Henry Ford tentou demover a organização sindical dos seus
trabalhadores por via da contratação de empresas de segurança privadas,
responsáveis pelo ataque aos piquetes e até pelo assassinato de grevistas. Só
quando estas se revelaram incapazes na prevenção dos protestos é que Ford
sofreu uma súbita deriva «cidadanista», suportada, claro está, pelas
possibilidades de aumento da produtividade da força de trabalho.
4. A
entrada em jogo de agentes privados, e a consequente formação de um mercado
próprio, veio originar a inovação e expansão das tecnologias de vigilância. Dos
sistemas de videovigilância aos veículos não tripulados (drones) – recentemente
adquiridos pelas polícias do Brasil e Portugal –, passando por sistemas de software
de monitoramento de redes sociais, estes dispositivos constituem um dos sinais
mais evidentes do novo paradigma securitário. A multiplicação das instâncias
observadoras, públicas e privadas, permite mais do que o simples alargamento da
base de observação. Não se trata, neste sentido, de uma mera reprodução
quantitativa de panóticos ou sequer do alargamento dos muros de uma qualquer
instituição disciplinar (prisão, sanatório, escola ou fábrica) à sociedade em
geral. Se o modelo teorizado por Michel Foucault se baseava na omnipotência de
um agente ou grupo de agentes que, de um ponto superior, registavam todos os
movimentos de um largo conjunto de observados (sem que estes fossem capazes de
identificar o momento e os responsáveis por esse exame) [2], as novas fórmulas
de segurança apostam na dilatação social da função inspetora, fazendo de cada
vigiado um vigiante. A campanha lançada pela Carris e pelo Metropolitano de
Lisboa é o mais recente exemplo deste receituário. Face ao aumento do não
pagamento do uso do transporte, provocado pela subida de preços, as empresas
convidam os utentes a apostar “na responsabilização e na sensibilização para a
temática da fraude”, denunciando os suspeitos de prevaricação. Conforme se pode
ler no comunicado emitido pelo Metropolitano de Lisboa, o reforço
da atuação de equipas de fiscalização e o maior envolvimento das autoridades
policiais deverão ser complementados pela “realização de ações internas
destinadas a tripulantes e agentes de tráfego, que visam mobilizar todos os
colaboradores, cada qual no âmbito da missão que lhe está atribuída, para uma
maior atenção à entrada dos clientes”.
5. A
eventual possibilidade de se contar com as pessoas num processo que as visa a
si próprias vem introduzir profundas alterações na estratégia a desenvolver
pelas forças de segurança. O artigo «Teoria do Caos»,
através do qual o Passa Palavra reproduz o ponto de vista de um pequeno grupo
de gestores policiais, defende um tipo de atuação cirúrgico, realizado com base
numa monitorização permanente e em alternativa a “intervenções indiscriminadas
contra grandes multidões, apesar de ainda manter essa possibilidade como uma
opção tática”. Uma das vantagens desta estratégia é a criação de um “contexto
de percepção da legitimidade da ação policial” no qual, no caso dos espetáculos
de futebol, “os fãs começaram a se «autopoliciar» ao ativamente impedirem
aqueles que tentavam causar problemas ou, pelo menos, tornando mais fácil para
a polícia lidar com esses elementos”. No rescaldo da carga policial sobre
manifestantes e grevistas ocorrida em Lisboa no dia 14 de novembro de
2012, foram várias as vozes, oriundas do seio quer da polícia quer dos
próprios manifestantes, a criticar a ação das forças de segurança por não ter
isolado os «desordeiros» dos «cidadãos» e, posteriormente, procedido à detenção
dos primeiros. Nos protestos de junho de 2013 no Brasil, a tentativa dos meios
de comunicação de sequestrar o sentido dos protestos a partir de seu interior –
que chegou ao auge naquilo que então este site chamou de “Revolta dos
Coxinhas” - teve como elemento central a divisão interna das manifestações
entre vândalos e ordeiros. Após a brutal repressão contra os atos anteriores,
no dia 17 de junho a Polícia Militar simplesmente saiu das ruas de São Paulo
deixando a palavra de ordem “sem violência” (que, em meio à diluição de pautas,
parecia tentar ganhar lugar como uma mais entre as várias reivindicações da
multidão) fazer o trabalho da Tropa de Choque. Em 20 de junho de 2013, em
Goiânia, a distribuição pela Polícia Militar de 10 mil flores aos manifestantes, em conjunto com faixas e
caras sorridentes, garantiu que a primeira manifestação numa cidade desse porte
em muitos anos se encarregasse ela mesma, de maneira extremamente violenta, de
punir as transgressões dos manifestantes considerados desordeiros em seu meio.
6. Garantir
um policiamento dos cidadãos sem sangue, suor e lágrimas, mas sim com sorrisos
e até agradecimentos pela civilidade demonstrada corresponde, paralelamente, a
uma política securitária que, munida dos dispositivos tecnológicos e
psicossociais adequados, pretende fazer mais com menos, uma vez que, neste
caso, parte da eficácia reside, precisamente, numa ação quase invisível, a ser
cumprida quase sempre de forma indireta.
7. Em
Portugal, a aplicação de medidas de austeridade na área da segurança será
responsável pelo retardar deste processo, fruto quer da impossibilidade de
investimento em larga escala na aquisição de novos meios (não obstante a
demonstração de algum esforço por parte do atual governo português) quer pela insatisfação
gerada entre as hostes policiais. O facto de estarmos perante um processo
moroso, a ser desenvolvido a longo prazo, concede um relativo espaço de manobra
a todos os interessados numa eventual antecipação dos seus efeitos e, como é
óbvio, na sua subversão. Ao passo que no Brasil, com a economia em crescimento
e a aproximação de megaeventos de escala mundial como a Copa do Mundo e as
Olimpíadas, esse processo tende a se acelerar. As últimas marchas contrárias à
Copa foram usadas pela polícia para testar novas táticas repressivas, que
experimentaram deixar de lado o uso de munição na tentativa de ampliar o
controle a partir de manobras de encapsulamento, assim definindo os trajetos do
ato, separando grupos potencialmente perigosos e aumentando o número de presos.
Resta a pergunta: quem está se preparando melhor?
Notas
[1]
Deleuze, Gilles (2003), «Controlo e Devir», In Conversações, Lisboa, Fim de
Século, p. 234
[2] Ver, entre outras obras, o seu Vigiar e Punir.
[2] Ver, entre outras obras, o seu Vigiar e Punir.
Fonte: http://passapalavra.info/
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