segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Apesar de BHObama, apuração de crimes de guerra avança - Por Chico Villela

Apesar de BHObama, apuração de crimes de guerra avança - Por Chico Villela

O The New York Times, um dos jornalões dos EUA que se contorce para apoiar, com aparente ‘independência’, o novo complexo que determina os objetivos estratégicos do país e congrega as forças armadas, bancos e interesses de armamento e energia (o antigo “complexo industrial-militar” denunciado por Eisenhower nos anos 1950), titulou matéria dia 24 de agosto de 2009 na seção Política: “EUA afirmam que seqüestros vão continuar, mas com mais supervisão”.

A palavra ‘seqüestros’ traduz imperfeitamente o original ‘rendition’ (capitulação, rendição), que se explica assim: agentes do governo, CIA, militares euamericanos etc. prendem, sem mandato ou autorização, em qualquer país, sem conhecimento do governo local, um “suspeito”, sem culpa formada ou acusação existente, e o entregam, após embarcá-lo em vôos secretos patrocinados pela CIA (a maioria operada pela Jeppesen, empresa subsidiária do maior fabricante de armamento, a Boeing), a qualquer governo de países ‘aliados’, para prisão e interrogatório e, muitas vezes, morte, em geral sob tortura.
As ‘renditions’ são ilegais na ótica das leis de qualquer país em que ocorram, pois implicam a presença de agentes estrangeiros no território que operam sem autorização dos governos em ações secretas que violam a soberania do país. São ilegais também na ótica das leis internacionais, já que atingem cidadãos sem acusação nem culpa formada, caracterizados como “suspeitos”, numa inversão dos mais consagrados cânones do direito internacional contemporâneo. A matéria do NYT abre com a pérola:
“A administração Obama vai manter a prática da administração Bush de enviar suspeitos de terrorismo para outros países para detenção e interrogatório, mas garante monitorar de perto o seu tratamento para certificar-se de que não são torturados, afirmaram autoridades da administração [...]”.
A linguagem tenta amaciar a questão, ao chamar a ilegalidade de ‘prática’, mas não consegue esconder a realidade: a administração BHObama dá continuidade a uma das mais aberrantes disposições fascistas do regime Cheney-Bush. Note-se o reconhecimento da inocência dos infelizes enviados aos centros de tortura, em geral de seus países de origem: são nomeados como “suspeitos”, ou seja, reconhece-se que não existe nem acusação nem culpa formada.
A revelação faz paralelo com o propalado “fechamento” do centro de torturas de Guantánamo, até hoje em funcionamento, apesar das ‘promessas e esforços’ do presidente. O marketing do governo martela a conquista democrática de fechar um dos mais abjetos centros prisionais de tortura do mundo, mas não toca no assunto espinhoso das outras dezenas de centros em funcionamento pelo mundo afora e em navios da frota e bases militares.
O jornalão registra, corretamente, a oposição ao ilícito no parágrafo seguinte: “Advogados de direitos humanos condenam a decisão, alegando que a continuidade da prática, conhecida como ‘rendition’, iria mesmo estimular a transferência de prisioneiros para países com tradição de tortura. Eles afirmaram que as promessas de tratamento humano por outros países, chamadas ‘garantias diplomáticas’, não garantiam proteção contra abusos”.
A manifestação de oposição parte de Amrit Singh, advogado da União Euamericana pelas Liberdades Civis, a conhecida e valorosa Aclu, que seguiu casos de ‘rendition’ no regime Cheney-Bush. Singh declara-se desapontado com o fato de BHObama prosseguir na tradição do regime anterior de basear-se em garantias diplomáticas que não evitam a tortura.
O NYT cogita que o anúncio da manutenção da ‘rendition’, partido de um inacreditável grupo organizado pelo atual governo nomeado ‘Interrogation and Transfer Policy Task Force’, tem por objetivo reduzir o impacto da recente revelação, pelo Departamento de Justiça, de um relatório de 2004 do então inspetor geral da CIA (http://www.gwu.edu/~nsarchiv/torture_archive/20040507.pdf) com detalhes de “técnicas brutais” usadas pela agência contra “prisioneiros terroristas”. O relatório só agora foi liberado para circulação, com os cortes e a censura de praxe, como se pode ver no original.
A questão se assemelha em tudo à polêmica em torno do grupo que orquestrava comandos assassinos, organizado fora do aparelho de governo pelo ex-presidente Cheney e coordenado pelo atual comandante das tropas aliadas no Afeganistão, general Stanley McChrystal (ver ‘BHObama e operações especiais’, nesta coluna). Imobilizado por suas próprias contradições, o governo BHObama até agora foi incapaz de definir uma linha de ação conseqüente. Compreende-se: qualquer movimento na direção de audiências, inquéritos etc. incriminará em primeiro plano o ex-vice-presidente e o general, e também o ex-presidente.
O Congresso chiou porque durante sete anos foi-lhe omitido o funcionamento dos comandos assassinos. A Aclu chia porque BHObama baseia-se em garantias falsas para prosseguir a ilegalidade inaugurada pelos fascistas do antigo regime. Em ambos os casos, permanece o pressuposto básico intocável: o governo tem direito de assassinar inimigos e “suspeitos” em qualquer país. Parte expressiva da sociedade parece estar tão mergulhada no clima de infindáveis guerras e omnipresente violência que já abandonou a prerrogativa de questionar a política de guerra permanente dos sucessivos governos.
Mas BHObama já desautorizou os que clamam por medidas que levem os criminosos de guerra ao banco dos réus, mesmo porque a cada dia mais se aproxima do perfil do seu antecessor, com acréscimo do crime de omissão. É cristalino que tanto os mandantes, desde Bush e Cheney, até o secretário de Justiça e seus funcionários e agências que emitiram autorizações para tortura cometeram violações de leis internacionais e nacionais (United States Code, Título 18, Parte I, Capítulo 118, Parágrafo 2441 – Crimes de Guerra).
A declaração do presidente, ao alegar que ‘não irá punir aqueles que torturaram acobertados por leis e decretos’ do regime Cheney-Bush, escancara sua conivência com os criminosos de todos os escalões. Muitos militares alemães de alta patente foram enforcados após o Tribunal de Nuremberg, pós-Segunda Guerra, porque não foram aceitas as alegações de que estariam cumprindo ordens ao torturar e assassinar milhões de judeus, comunistas, homossexuais e ciganos, entre suas outras principais vítimas.
O que BHObama omite com essa declaração é que os decretos e leis do regime Cheney-Bush relativos à aprovação de tortura de prisioneiros também são ilegais, violam dispositivos de tratados e convenções internacionais, e transformam seus autores e prepostos em criminosos de guerra. Sem contar que a dupla Cheney-Bush e seu comparsa Tony Blair são inculpados pelo mais destacado e consagrado dos crimes de guerra: a agressão armada a um país sem motivo além da rapina. Razão suficiente para que tomem assento no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional.
Cinco dias após a destruição por implosão das torres gêmeas e da terceira, em 2001, Cheney declarou em entrevista ao repórter Tim Russert que agora se passaria “a trabalhar em algo como o lado escuro”, “a dispender o tempo nas sombras do mundo de inteligência”; “muito do que se precisa fazer será feito quietamente, sem qualquer discussão, usando recursos e métodos disponíveis para nossas agência de inteligência, se quisermos ser bem-sucedidos”. “Este é o mundo em que esses ‘folks’ operam, e assim vai ser vital para nós usar quaisquer dos meios a nossa disposição, basicamente, para conseguir nosso objetivo”. Cheney falou claro, já antevendo os horrores descritos a ferro quente no relatório do inspetor geral da CIA.
Esperanças depositam-se no secretário de Justiça, Eric Holder, que tem dado passos que podem terminar por ir na direção da responsabilização dos autores maiores das violações, caso não seja parado antes por BHObama. A liberação ao público pelo secretário do relatório de 2004 reforça as posições dos que, dentro e fora do governo, pretendem que se tome esse rumo.
No artigo http://www.consortiumnews.com/2009/082609a.html, de 26 de agosto, o analista Ray McGovern, 27 anos de CIA, considera positivo o alargamento, pelo secretário de Justiça, do mandato do promotor John Durham para investigar violações, por agentes da CIA e contratados, das leis sobre tortura e outros dispositivos. Durham investigou durante um ano o desaparecimento de centenas de vídeos que documentaram sessões de tortura, o que se deu não muito após o conhecimento da existência do relatório do inspetor geral. O NYT aponta o desagrado de entidades que lutam pelos direitos civis em face das declarações do então candidato a presidente, desmentidas pelas suas políticas em curto prazo, o que, entre outros fatores, explica a queda livre dos seus índices de popularidade. Em artigo na revista Foreign Affairs, porta-voz de think-tank arquiconservador que tem hoje decisiva influência no governo, o candidato afirmava:
“To build a better, freer world, we must first behave in ways that reflect the decency and aspirations of the American people. This means ending the practices of shipping away prisoners in the dead of night to be tortured in far-off countries, of detaining thousands without charge or trial, of maintaining a network of secret prisons to jail people beyond the reach of the law.”

Palavras de candidato: encerrar as ‘renditions’ e a entrega de prisioneiros para tortura em variados países, encerrar as detenções sem acusação ou julgamento, fechar a rede de prisões secretas orquestrada pela CIA e contratados. As ‘renditions’ continuam, agora sob controle de grupo formado pelo presidente e suas inócuas “garantias diplomáticas”. As detenções sem acusação ou julgamento acham-se previstas, acima de leis nacionais e internacionais, na fascista Patriot Act de 2001, que jogou a maior parte das liberdades civis no limbo.

A Patriot Act continua na sombra, o governo nem sequer se refere a ela, e a imensa rede interna de controle, Homeland Security, forte e organizada, com campos sociais determinantes na mão, verba de mais de meia centena de bilhões. Os cerca de 600 “campos de detenção provisória” erguidos durante o regime Cheney-Bush acham-se em stand by, prontos para operar. A rede de prisões secretas mundo afora perpetua-se, com alterações recentes em razão de denúncias e rápida desativação de prisões em países da impoluta e severa Europa, a mãe de todos os vícios. Na campanha, BHObama falou palavras. Palavras valem pelo que vale aquele que as pronuncia.

Um fator que pode decidir os rumos das investigações é a intenção de Cheney de jogar Bush na fogueira das responsabilidades para tentar livrar-se da imagem real do seu papel fundamental na montagem do sistema de ilegalidades. Cheney já externou críticas e acusações veladas a Bush, formalmente seu chefe durante os oito anos do regime, em parte como revanche pela sua recusa em contemplá-lo com perdão ao fim do seu governo. A notícia é boa: quanto mais eles se choquem, mais realidades ocultas poderão vir à tona. E mais BHObama será empurrado além da sua vontade na direção da apuração de responsabilidades.

Esse desfecho será justo, caso chegue, não só aos altos escalões do governo, mas também aos altos postos da própria CIA e, em menor escala, de outras das 15 agências de inteligência existentes. Algumas dezenas de analistas como McGovern, reunidos em associação de veteranos agentes que lutam pela restauração da dignidade e dos objetivos originais da agência (http://schema-root.org/people/political/think_tank/veteran_intelligence_professionals_for_sanity/, apontam amplo desvirtuamento do papel da CIA sob o regime Cheney-Bush, com a conivência de antigos diretores como George Tenet. A falsificação dos argumentos que permitiram a monstruosidade da guerra contra o Iraque, por exemplo, recebeu apoio e reforço em relatórios e informes da agência.

Como pode ver o leitor, o relatório traz centenas de parágrafos e trechos completamente cobertos. McGovern glosa a situação ao lembrar que o “lado escuro” a que Cheney aludiu está presente ali sob a tinta preta, subjacente ao gesto de censura.

Para McGovern, não é difícil preencher as lacunas com os dados e fatos agora de conhecimento público. Cita as quatro páginas (111 a 114) das Recomendações obliteradas.

Mas não é um exercício agradável.

Clique (http://www.democracynow.org/2004/6/3/online_exclusive_27_year_cia_vet) e acompanhe uma conversa de Ray McGovern com Amy Goodman e Jeremy Scahill sobre CIA e dignidade.

Fonte: http://www.novae.inf.br/

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