quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Tom Wolfe, o idiota útil de direita - Página 12

Tom Wolfe, o idiota útil de direita

Se Leonard Bernstein e seus amigos encarnaram o radical chique naqueles tempos de Vietnã e Panteras Negras, Tom Wolfe (apontado como o criador do Novo Jornalismo) e seus exegetas inventaram outra categoria, bastante desagradável e suspeitosamente idônea para os tempos de Reagan e de Bush: o "cínico chique". Como dizia outro Leonard, igualmente judeu e radical chique, de nacionalidade canadense e sobrenome Cohen: “Às vezes se escolhe de que lado se está simplesmente vendo quem está do outro lado”. O artigo é de Juan Forn, do Página 12.

Juan Forn - Página 12

Data: 21/08/2009
Em junho de 1970, Leonard Bernstein e sua esposa Felicia convidaram um grupo de amigos para sua cobertura novaiorquina na Park Avenue, a fim de arrecadar fundos em favor dos Panteras Negras (vinte e um membros da organização enfrentavam naquele momento um duro processo judicial por terem posto bombas num quartel de polícia). Os convidados formavam um selecionado grupo de notáveis: os compositores Aaron Copland e Gian Carlo Menotti, o fotógrafo Richard Avedon, a escritora Lilian Hellman, os diretores de cinema Mike Nichols e Otto Preminger, o ator Jason Robards, o cantor Harry Belafonte e o diretor de orquestra Peter Duchin dialogaram longamente com três Panteras Negras, tendo dois jornalistas como testemunhas: Tom Wolfe e uma jornalista do The New York Times chamada Carlotte Curtis.

No dia seguinte, Curtis relatou os fatos no Times, e uma semana depois Wolfe fez seu próprio, na revista New York. Seu lendário e lapidar artigo, Radical Chic (“A esquerda chique”), ocupava o número completo da revista, que além disso mostrava na capa três mulheres vestidas como damas de sociedade, mas com o punho direito no alto, envoltos em luvas negras (imitando a celebrérrima foto dos atletas norte-americanos no pódio, durante as Olimpíadas do México, em 1968).

O efeito foi devastador: além de lançar fogo contra Bernstein e seus amigos, e de consagrar-se como o cronista por excelência da nova sociedade, Wolfe cunhou um termo que serviria para caricaturar desde então toda inclinação progressista na intelectualidade estadunidense.

O interessante do assunto é que Wolfe não encontrou por si só o enfoque para seu artigo, mas o furtou de Curtis. Explico-me: Curtis não havia escrito para a seção política, mas para as páginas de sociedade do Times sua cobertura do fato, e o fez à maneira de uma nota de coluna social (dedicando mais atenção aos quitutes que tinham sido servidos e ao vestuário das damas do que ao discurso dos Panteras e às perguntas de Bernstein e seus amigos).

No dia seguinte, na página editorial do jornal, acusou-se Bernstein de “manchar a memória de Martin Luther King com suas tolices de salão” (a reunião havia coincidido involuntariamente com o aniversário de morte de King). Ao ler o jornal, Wolfe soube que tinha ouro em pólvora em suas mãos se conseguisse encontrar um elemento subterrâneo que explicasse por que aquele encontro entre a radicalidade negra e a elite intelectual novaiorquina incomodava tanto. E sacou da manga sua teoria do status: segundo Wolfe, o progressismo de Bernstein e seus amigos se devia à angústia própria de sua condição de judeus, que os levava a se identificarem com os oprimidos, mesmo quando eram parte evidente da classe privilegiada (inclusive falava da Teoria das Fraldas Vermelhas, com relação à quantidade de militantes universitários daqueles anos que vinham de lares judeus bem estabelecidos materialmente).

Wolfe não se privou de nada em seu artigo: chegava a dizer de uma das senhoras participantes do encontro que estava “emocionada por conhecer seu primeiro Pantera Negra”; contava que na casa dos Bernstein não havia serviço doméstico negro para não ofenderem aos ativistas convidados, e acrescentava que, como Felicia Bernstein era chilena, não tinha inconveniente em conseguir, para si mesma e suas amigas, mucamas sul-americanas (Jamie, um dos filhos de Bernstein, recordou há pouco que sua mãe nunca se recuperou da vergonha e morreu pouco depois de um câncer fulminante: “Nada voltou a ser igual em casa, depois daquele artigo”).

Wolfe inclusive mencionava os piquetes que se instalaram diante do edifício dos Bernstein na Park Avenue e as toneladas de cartas indignadas os acusando de antipatrióticos, mal-agradecidos, gente má. E não eram os anos do macartismo: era 1970.

No fim do ano passado, houve em Nova York uma celebração em memória dos vinte anos da morte de Bernstein e noventa de seu nascimento (tocaram todas as suas obras, desde as sinfonias “sérias” até West Side Story). Quase simultaneamente, o FBI liberou o volumoso arquivo que tinha sobre ele, e assim se pôde saber que grande parte daqueles protestos em 1970 foram orquestrados pelo FBI, e inclusive pelo próprio J. Edgar Hoover (um memorando interno assinado por ele aconselhava a enfatizar o antissemitismo dos Panteras Negras e a adesão, nunca provada, de Bernstein ao Partido Comunista estadunidense). Os registros não começam nem terminam aí: já em 1951 o nome de Bernstein figura numa lista de “cidadãos a serem trasladados a campos de detenção em caso de uma emergência nacional”. E chega ao ponto máximo em 1971, quando Bernstein devia inaugurar o Kennedy Center com sua missa inaugural, um oratório em que seu autor, sempre segundo o FBI, planejava “envergonhar o governo”, mascarando em latim consignas contra a guerra do Vietnã e contra o próprio presidente (que devia assistir protocolarmente ao evento).

Nixon personificou a Bernstein como a síntese da decadência da elite intelectual norte-americana e exigiu aos seus capangas Haldeman e Hoover que incitassem a imprensa a mencionar o “costume nauseabundo” de Bernstein de beijar os homens na boca (quer dizer, a ventilar sua bissexualidade). Tudo aquilo que fazia tanta graça no artigo de Wolfe tornou-se azedo, amargo, rançoso, lido naquele arquivo, com Bernstein há tanto tempo morto.

Vista à distância, a grande contribuição de Tom Wolfe ao Novo Jornalismo foi o uso (quase histérico) da ironia. De fato, chegou a se dizer que a Era da Ironia começou com o Novo Jornalismo, ainda que nem Truman Capote nem Norman Mailer, nem o demente do Hunter Thompson tenham apelado a ela tanto como Wolfe (a Era da Ironia terminou, claro, com a derrubada das Torres Gêmeas: com isso não se brinca). Vendo à distância sobre quais objetivos Wolfe aplicou sua ironia em suas festejadas peças jornalísticas, nota-se que por baixo dela sempre há uma crítica aos novos costumes, e um solapado neoconservadorismo. É significativo que o homem que tenha radiografado como nenhum outro os idiotas úteis da esquerda tenha sido, ele mesmo, um idiota útil da direita, para não dizer algo pior. Se Leonard Bernstein e seus amigos encarnaram o radical chique naqueles tempos de Vietnã e Panteras Negras, Wolfe e seus exegetas inventaram outra categoria, para meu gosto bastante desagradável e suspeitosamente idônea para os tempos de Reagan e de Bush: o cynical chic. Como dizia outro Leonard, igualmente judeu e radical chique, de nacionalidade canadense e sobrenome Cohen: “Às vezes se escolhe de que lado se está simplesmente vendo quem está do outro lado”

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: www.cartamaior.com.br

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