PODEMOS CONVERSAR? A “INDÚSTRIA DA PAZ” DO ORIENTE MÉDIO
Por Faris Giacaman (*), 27.08.2009
Ao descobrirem que sou palestino, muitas pessoas que encontro na universidade aqui nos Estados Unidos ficam ansiosas por informar-me de várias atividades em que têm participado a fim de promover “coexistência” e “diálogo” entre ambos os lados do “conflito”, sem dúvida à espera de um aceno de aprovação da minha parte. Contudo, estes esforços são danosos e minam o apelo da sociedade civil palestina em favor do boicote, desinvestimento e sanções a Israel – o único meio de pressionar Israel a cessar as suas violações dos direitos dos palestinos.
Quando eu frequentava o secundário, em Ramalá, uma das iniciativas “pessoa-a-pessoa” mais conhecidas, a Seeds of Peace, muitas vezes visitava a minha escola, pedindo aos estudantes para aderirem ao seu programa. Quase todos os anos eles enviavam alguns dos meus colegas a um campo de Verão nos EUA com um grupo de estudantes israelenses.
Segundo o sítio web de Seeds of Peace, ensinam-lhes no campo a “desenvolver empatia, respeito e confiança bem como liderança, comunicação e aptidões de negociação – componentes críticos que facilitarão a coexistência pacífica da geração seguinte”. Eles pintam um quadro róseo e a maior parte das pessoas na universidade fica muito surpreendida ao ouvir que penso serem tais atividades equivocadas na melhor das hipóteses e imorais na pior. Por que diabos eu era contra a “coexistência”, perguntavam-me sempre.
Durante os últimos anos tem havido apelos crescentes a por um fim à opressão do povo palestino por Israel através de um movimento internacional de boicote, desinvestimento e sanções (BDS). Uma das objeções comuns ao boicote é que ele é contra-producente e que o “diálogo” e a “promoção da coexistência” são muito mais construtivos do que boicotes.
A partir do início dos acordos de Oslo, em 1993, tem havido toda uma indústria que opera no sentido de reunir israelenses e palestinos nestes grupos de “diálogo”. A finalidade declarada de tais grupos é a criação de entendimento entre “ambos os lados conflito”, a fim de “construir pontes” e “ultrapassar barreiras”. Contudo, a suposição de que tais atividades ajudarão a facilitar a paz não é não só incorrecta como realmente carente de moral.
A presunção de que o diálogo é necessário a fim de alcançar a paz ignora completamente o contexto histórico da situação na Palestina. Ela assume que ambos os lados cometeram uma quantidade mais ou menos igual de atrocidades um contra o outro e que são igualmente culpáveis pelos erros que foram cometido. É assumido que nenhum lado está completamente certo ou completamente errado, mas que ambos têm direitos legítimos que deveriam ser tratados e certos pontos mortos que devem ser ultrapassados. Portanto, ambos os lados devem ouvir o ponto de vista do “outro” a fim de promover o entendimento e a comunicação, os quais presumivelmente levariam à “coexistência” ou a “reconciliação”.
Tal abordagem é considerada “equilibrada” ou “moderada”, como se isto fosse uma coisa boa. Contudo, a realidade no terreno é imensamente diferente do que a visão “moderada” deste assim chamado “conflito”. Mesmo a palavra “conflito” é enganosa, pois ela implica uma disputa entre duas partes simétricas. A realidade não é assim; não se trata de um caso de simples falta de entendimento ou de ódio mútuo que se atravessa no caminho da paz. O contexto da situação em Israel/Palestina é de colonialismo, apartheid e racismo, uma situação na qual há um opressor e um oprimido, um colonizador e um colonizado.
Em casos de colonialismo e apartheid, a história mostra que regimes coloniais não abandonam o poder sem luta e resistência popular, ou pressão internacional direta. É uma visão particularmente ingênua assumir que a persuasão e a “conversação” convencerão um sistema opressor a renunciar ao seu poder.
O regime do apartheid na África do Sul, por exemplo, foi finalizado após anos de luta com a ajuda vital de uma campanha internacional de sanções, desinvestimentos e boicotes. Se alguém houvesse sugerido aos oprimidos sul-africanos que viviam nos bantustões a tentar e entender o ponto de vista do outro (isto é, dos partidários da supremacia branca), as pessoas teria rido de uma noção tão ridícula. Analogamente, durante a luta indiana pela emancipação do domínio colonial britânico, Mahatma Gandhi não teria sido venerado como um combatente pela justiça se houvesse renunciado à satyagraha – “ater-se firmemente à verdade”, a sua expressão para o movimento de resistência não violenta – e ao invés disso houvesse advogado em favor do diálogo com os ocupantes colonialistas britânicos a fim de entender o seu lado da história.
Entretanto, é verdade que alguns sul-africanos brancos tomaram posição de solidariedade com os negros oprimidos e participaram na luta contra o apartheid. E havia, certamente, alguns britânicos dissidentes das políticas coloniais do seu governo. Mas aqueles apoiantes posicionaram-se explicitamente ao lado dos oprimidos com o objetivo claro de acabar com a opressão, de combater as injustiças perpetradas pelos seus governos e representantes. Qualquer reunião conjunta de ambas as partes, portanto, só pode ser moralmente sã quando os cidadãos do estado opressivo posicionam-se em solidariedade aos membros do grupo oprimido, não sob a bandeira do “diálogo” com o objetivo de “entender o outro lado da história”. O diálogo só é aceitável quando efetuado a fim de entender o problema do oprimido, não no contexto de “ouvir ambos os lados”.
Entretanto, tem sido argumentado pelos proponentes palestinos destes grupos de diálogo que tais atividades podem ser utilizados como uma ferramenta – não para promover o assim chamado “entendimento” – mas para realmente ganhar israelenses para luta palestina pela justiça, persuadindo-os ou “tendo eles de reconhecer a nossa humanidade”.
Contudo, esta concepção também é ingênua. Infelizmente, a maior parte dos israelenses caiu vítima da propaganda com que o establishment sionista e os seus muitos instrumentos os alimentam desde tenra idade. Além disso, exigirá um esforço enorme e concertado contrariar esta propaganda através da persuasão. A maior dos israelenses, por exemplo, não será convencida de que o seu governo atingiu um nível de criminalidade que justifique um apelo ao boicote. Mesmo que eles sejam convencidos logicamente das brutalidades da opressão israelense, provavelmente não será o suficiente para levá-los a qualquer forma de ação.
Isto tem-se provado reiteradamente verdadeiro, o que é evidente no fracasso abjeto de tais grupos de diálogo para formarem qualquer movimento abrangente anti-ocupação desde os seus primórdios com o processo de Oslo. Na realidade, nada menos do que a pressão sustentada – não a persuasão – fará os israelenses perceberem que os direitos dos palestinos têm de ser retificados. Esta é a lógica do movimento BDS, o qual é inteiramente oposto à falsa lógica do diálogo.
Com base num relatório não publicado de 2002 do Israel/Palestine Center for Research and Information, o San Francisco Chronicle informou em outubro último que “entre 1993 e 2000 [apenas], governos e fundações ocidentais gastaram entre US$20 milhões e US$25 milhões nos grupos de diálogo”. Um ulterior inquérito em grande escala a palestinos que participaram nos grupos de diálogo revelou que esta grande despesa falhou em produzir “um único ativista da paz em qualquer dos lados”. Isto confirma a crença entre palestinos de que todo o empreendimento é um desperdício de tempo e de dinheiro.
O inquérito também revelou que os participantes palestinos não eram plenamente representativos da sua sociedade. Muitos participantes tendiam a ser “filhos ou amigos de altos responsáveis palestinos ou das elites econômicas. Apenas sete por cento dos participantes eram residentes em campos de refugiados, muito embora eles constituam 16 por cento da população palestina”. O inquérito também descobriu que 91 por cento dos participantes palestinos já não mantinham laços com os israelenses com quem se encontraram. Além disso, 93 por cento não foram abordados com atividade de campo a seguir e apenas cinco por cento concordaram em que toda a experiência ajudou a “promover paz, cultura e diálogo entre participantes”.
Apesar do inequívoco fracasso destes projetos de diálogo, continua a ser investido dinheiro neles. Como explicou Omar Barghouti, um dos membros fundados do movimento BDS na Palestina, em The Electronic Intifada, “houve demasiadas tentativas de diálogo desde 1993 … tornou-se uma indústria – chamamo-la a indústria da paz” (leia aqui).
Isto pode ser atribuído parcialmente a dois fatores. O fator dominante é o papel utilizável de tais projetos em relações públicas. O Seeds of Peace, por exemplo, jacta-se da sua legitimidade apresentando um impressionante conjunto de endossos por parte de políticos e autoridades tais como Hillary Clinton, Bill Clinton, George Mitchell, Shimon Peres, George Bush, Colin Powell e Tony Blair, dentre outros.
O segundo fator é a necessidade de certos “esquerdistas” e “liberais” israelenses sentirem como se estivessem a fazer alguma coisa admirável ao “questionarem-se”, quando na realidade eles não tomam nenhum posicionamento significativo contra os crimes que o seu governo comete em seu nome. Os políticos e os governos ocidentais continuam a financiar tais projetos, promovendo dessa forma as suas imagens como apoiantes da “coexistência”, e os “liberais” participantes israelenses podem isentar-se de qualquer culpa pela participação no nobre ato de “promover a paz”. Um relacionamento simbiótico, muito insatisfatório.
A falta de resultados de tais iniciativos não é surpreendente, pois os objetivos declarados do diálogo e grupos de “coexistência” não incluem convencer israelenses a ajudar palestinos a ganharem o respeito dos seus direitos inalienáveis. A exigência mínima de reconhecer a natureza inerentemente opressiva de Israel está ausente nestes grupos de diálogo. Ao invés disso, estas organizações operam sob a dúbia suposição de que o “conflito” é muito complexo e multifacetado, onde há “dois lados em toda história” e que cada narrativa tem certas afirmações válidas assim como dúbias.
Quando o apelo autorizado Campanha Palestina pelo Boicote Acadêmico e Cultural de Israel faz o seu caminho, quaisquer atividades conjuntas palestino-israelenses – quer sejam projeções de filmes ou campos de Verão – pode ser aceitável só quando o seu objetivo declarado for finalizar, protestar e/ou despertar a consciência quanto à opressão dos palestinos.
Qualquer israelense que procure interagir com palestinos, com o objetivo claro de solidariedade e de ajudá-los a acabar com a opressão, será saudado de braços abertos. Mas deve haver cautela, contudo, quando são feitos convites para participar num diálogo entre “ambos os lados” do assim chamado “conflito”. Qualquer apelo a um discursos “equilibrado” sobre esta questão – onde o lema “há dois lados em toda história” é reverenciado quase religiosamente – é intelectualmente e moralmente desonesto pois ignora o fato de que, quando se trata de casos de colonialismo, apartheid e opressão não tal coisa como “equilíbrio”. A sociedade opressora, de modo geral, não renunciará aos seus privilégios sem pressão. É por isso que a campanha BDS é um importante instrumento de mudança.
(*) Faris Giacamané estudante palestino da Cisjordânia, estudando no segundo ano de uma universidade nos Estados Unidos. O original encontra-se em http://electronicintifada.net/v2/article10722.shtml ; Este artigo também foi publicado em 20/08/2009 em http://resistir.info/ ; Conheça o Global BDS Movement: www.bdsmovement.net
Fonte: http://www.fazendomedia.com/
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário