A população que passa por baixo
Os usuários lidam de variadas maneiras com o custo do transporte, e a algumas o poder público insiste em chamar de fraudes. Esta subversão diária feita pelo usuários tem a mesma razão que a luta do Movimento Passe Livre e da população que toma as ruas novamente em Florianópolis. Por Passa Palavra
Os usuários [utentes] do transporte público lidam de variadas maneiras com o custo do transporte, buscando sempre diminuir esta despesa, que chega ser a segunda mais alta das famílias brasileiras. Relato aqui algumas experiências que o poder público insiste em chamar de fraudes.
A primeira alternativa que vem à minha mente quando penso em maneiras a que nós, os usuários de transporte coletivo, recorremos para baratear nosso custo com deslocamentos é a prática de passar por baixo da catraca [*] e não pagar a passagem. Esta tática esbarra em alguns empecilhos. Primeiro, a negociação com o cobrador [funcionário que vende os bilhetes e controla o torniquete], que precisa autorizar você a fazer isto, o que é mais comum em ônibus [autocarros] que circulam nas regiões periféricas da cidade, uma vez que nestas o número de fiscais é menor e por vezes a relação entre o cobrador e os passageiros é mais próxima. Segundo problema é de disponibilidade física. É necessária uma certa maleabilidade e destreza para passar por baixo da catraca. Nos tempos em que eu era menino ainda era mais simples, pois as catracas eram menores e não iam até próximo do chão como as atuais, adotadas justamente para inibir este tipo de prática. Agora para passar por baixo e não se sujar é necessário o aprimoramento de uma técnica que requer bastante flexibilidade, além da situação de humilhação de se raspar no chão para não pagar a passagem. Neste sentido de transposição da catraca existe uma outra maneira menos humilhante, que requer um pouco menos de habilidade, que é pular a catraca. Esta geralmente tem mais resistência do cobrador e só consegue ser feita em situações em que o um grupo de passageiros tem força suficiente para garantir isto coletivamente, como em idas a jogos de futebol. Mas com o fretamento de ônibus para jogos e a elitização dos estádios estes momentos estão cada vez mais raros.
Na perspectiva individual existe também a tentativa de pagar com notas muito altas, que impossibilitam o troco e permitem que o usuário desça pela frente [nos autocarros, entre a entrada da frente e a catraca existem alguns lugares destinados as passageiros que, por lei, estejam dispensados de pagar bilhete]. O problema é que para tal é necessário ter uma nota de alto valor que não se precisa gastar para comer e outras necessidades diárias, por isso esta tática é geralmente utilizada por usuários que recebem uma quantidade alta de dinheiro para carregar o cartão ou comprar passe, e utilizam esta nota algumas vezes para andar de graça antes que encontrem algum cobrador com troco.
Ainda existe nas estações de trem [comboio] a possibilidade de chegar à plataforma pela via. Podemos encontrar diversos buracos nos muros ao redor do trilho [carris], que permitem o usuário ir andando pela via até chegar à estação e daí subir na plataforma ou diretamente no trem (pela janela). Estas tentativas dependem tanto do vigor físico do usuário, para escalar um muro, subir na plataforma ou ainda entrar no trem pela janela, quanto da ausência de guardas nas estações. Em Jandira, na Grande São Paulo, a CPTM resolveu o problema do grande número de usuários que entrava na estação pelos meios não convencionais pondo um rotveiler [raça de cães de guarda] para cuidar da via. Vale lembrar que esta tática enfrenta o risco de ser atropelado por um trem.
Saindo das alternativas individuais e indo para as coletivas, nos aparecem algumas outras táticas usadas, inicialmente por amigos e familiares. Temos no metrô a tática do deixar a catraca, ou seja, compramos nós dois um bilhete e o primeiro passa com ele com o corpo meio de lado, possibilitando que a catraca retorne ao lugar sem que gire, podendo o seguinte passar pela catraca. Esta tática pode ser utilizada por diversos usuários em sequência, mas precisa ser feita rapidamente para não ter problemas com a fiscalização e o tempo do bilhete não expirar. Requer extrema perícia para movimentar o corpo de forma que a catraca volte ao seu lugar, e é de fato geralmente praticada por adolescentes.
Outra prática protagonizada por jovens, mas repartida com toda a família, é a socialização do passe estudantil. Nas cidades em que os estudantes têm meia passagem é comum emprestarem seus cartões ou doarem seus passes para o pai, a mãe ou o irmão, contribuindo assim com a renda da casa. No Rio de Janeiro, antes da implementação do Rio Card, era comum observar várias pessoas mais velhas utilizando camisetas [T shirts] de escola pública para andar gratuitamente nos ônibus. Outro direito que por vezes é repartido com a família é o dos idosos; estes emprestam seus cartões e bilhetes para filhos e netos andarem de graça no transporte, e afinal estes o utilizam muito mais do que eles, que por outros fatores excludentes da sociedade costumam ficar mais restritos ao espaço privado. Em São Paulo, com o intuito de inviabilizar esta prática, a Prefeitura agora obriga o cobrador a verificar o bilhete do idoso e da pessoa com necessidades especiais.
Temos ainda um exemplo de solidariedade de classe ocorrido diariamente em São Paulo. Os usuários que descem na estação Cidade Universitária da CPTM e na Vila Madalena do Metrô têm direito a pegar [tomar] a Ponte Orca (uma van [miniautocarro] que faz a integração entre as duas estações). Os usuários do transporte compartilham então seus bilhetes, aqueles que descem em uma das estações e não vão utilizar a integração pegam o bilhete e dão para os outros usuários; já os que utilizaram a van mas não vão entrar na estação dão os bilhetes para aqueles que querem pegar o trem. E assim, diariamente, algumas centenas de pessoas utilizam o transporte gratuitamente.
Podemos perceber a partir destas experiências algumas brechas no sistemas de transporte coletivo tarifado no Brasil e como estas são utilizadas pelos usuários para aliviar os custos do transporte. Existe entre os usuários a percepção de que a tarifa é excludente, e no caso da Ponte Orca esta constatação se reverte em uma ação prática que garante a outros – entre pessoas que só têm em comum a utilização do transporte coletivo (e provavelmente a classe social) – o acesso ao transporte.
Esta subversão diária feita pelos usuários tem a mesma razão e inspiração que a luta feita pelos militantes do Movimento Passe Livre e também pela população que toma as ruas novamente em Florianópolis.
[*] Nota para os leitores portugueses. A catraca dos autocarros é um torniquete que o cobrador, sentado em frente, manobra com os joelhos, permitindo ou impedindo a passagem.
Fonte: http://passapalavra.info/
quarta-feira, 19 de maio de 2010
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