sexta-feira, 30 de abril de 2010

Brasil: O triunfo da experiência sobre a expectativa - Por Danilo Chaves Nakamura

Brasil: O triunfo da experiência sobre a expectativa

Descontando ar de deboche [riso] dos vencedores que tal edição carrega, o fato é que essa decolagem do Brasil rumo ao seu inevitável destino de país do futuro tem como contrapartida o encurtamento dum horizonte histórico alternativo. Por Danilo Chaves Nakamura [*]

“As noites cegas são poderosas, mas nós, nós somos a sua paciência”.
Victor Serge

Stefan Zweig (1881-1942), autor que de tempos em tempos é relembrado aqui no Brasil por ter reforçado a mitologia de que somos o país do futuro, volta a merecer citações após recente edição da revista The Economist intitulada “Brazil takes off”. As quatorze páginas da edição são divididas em oito artigos com títulos no mínimo sugestivos: “Getting it together at last”, “Breaking the habit”, “Survival of the quick-est”, “Arrivals and departures”, “Condemned to prosperity”, “The self-harming state”, “A better today” e “Two Americas ”[1].

De forma resumida podemos assim apresentar os artigos: O Brasil - que sempre foi visto como o país do futuro, mas que em seu passado não soube aproveitar as oportunidades - vive desde 1994 “a real miracle” com a implantação do Plano Real, a disciplina nas finanças e nos gastos públicos, um maior controle nos bancos e fundos, as privatizações de companhias públicas, as reformas para concessão de crédito e na lei de falência e etc. Com esse milagre, iniciado pelo governo Fernando Henrique Cardoso e continuado pelo governo Lula, o Brasil se tornou mais seguro e previsível para os investidores e as companhias brasileiras puderam competir no mercado exterior (Petrobrás, Vale do Rio Doce, Embraer, Gerdau, CSN, Perdigão, Sadia, JBS-Friboi, Odebrecht, Camargo Corrêa, Votorantim, Natura e outras).

Surfando nesse mar de prosperidade o Brasil soube reconhecer sua vocação histórica de produtor de commodities desmentindo os intelectuais brasileiros que costumavam argumentar que o papel do país como um produtor de commodity o relegaria permanentemente à periferia da economia mundial. Além disso, políticas sociais como o Bolsa Família e a política de aumento do salário mínimo incluíram milhares de pessoas no consumo, transformando a realidade do Brasil profundo, diz a revista: “On a Saturday night in Canudos, a town of 15.000 people in the interior of Bahia state surrounded on all sides by parched, silvery Forest, there is a lot of consumption going on. Everyone has mobile phone, a few people have a new cars, and early-evening courting is fuelled by branded beers and hot dogs”[2].

Mas muita coisa ainda precisa ser corrigida, diz The Economist: A concentração de terras gera uma disputa por terras que resulta no desmatamento descontrolado na Amazônia e nas invasões de fazendas pelo Movimento dos Sem Terra (MST). A desigualdade na infra-estrutura dificulta o escoamento de mercadorias. O Estado brasileiro é fraco onde deveria ser forte (educação, justiça, segurança, controle da economia informal) e forte onde deveria ser fraco (emperrando licenças ambientais para a construção de novas usinas ou portos e tornando difícil a contratação e a demissão de empregados pelas grandes companhias, por exemplo). E a Constituição Brasileira, segunda a revista, mais parece um orçamento do que a descrição de um conjunto de instituições para governar, pois ela foi escrita antes que a inflação fosse controlada, “(…) it is a monument to indexation ”[3].

Ainda segunda a revista, o Brasil vive hoje uma situação inédita, pois conquistou três pré-requisitos essenciais para desenvolver-se: democracia, crescimento econômico e inflação baixa. No século XIX tínhamos o problema da escravidão e a dependência desse tipo de mão-de-obra para a produção de commodities atrapalhou o desenvolvimento. No século XX o Brasil desfrutou de um “falso” milagre econômico. Sim, cresceu mais do que qualquer país, salvo Japão e Coréia do Sul; todavia, era dependente de um modelo estatal de desenvolvimento, não controlou a inflação e os juros altos e tinha pouca disposição para poupar. A novidade do século XXI é que com a junção dos três pré-requisitos citados acima finalmente estaríamos realizando nossas expectativas de país do futuro. Se o passado foi marcado pelo triunfo da experiência sobre a esperança, hoje essa esperança estaria sendo realizada.

É sobre essa presentificação do futuro que esse texto procurará apresentar algumas idéias. Trata-se sugerir que essa realização da esperança que The Economist fala é ainda um triunfo da experiência sobre as expectativas e não a realização do seu contrário, como eles querem. O objetivo, no entanto, não é desmentir a revista - uma vez que, um bom sociólogo ou um bom economista educado numa boa universidade facilmente nos desbancaria demonstrando com números e gráficos que nunca na história desse país tivemos uma conjuntura tão favorável para o crescimento econômico e para distribuição de renda – mas sim apresentar algumas hipóteses e buscar pensar o sentido desse “real miracle” [“milagre real”] de forma diferente do liberalismo delinqüente da revista inglesa.

Revisitando a idéia de sentido e formação
“Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão-de-obra que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se manterá dominante através dos três séculos que vão até o momento em que ora abordamos a história brasileira, se gravará profunda e totalmente nas feições e na vida do país”[4].

A interpretação de Caio Prado Jr. com sua ênfase na força formadora do sentido ainda hoje arrepia os pêlos de muito historiador. “Nada mais que isto”. “Tudo se disporá naquele sentido”. “Organização puramente produtora”. Para nossa historiografia hegemônica, a interpretação de Caio Prado é unilateral, pois dá uma ênfase demasiada para a dinâmica externa. É reducionista por sinalizar um único sentido excluindo um “mosaico de sentidos” que foi o nosso passado colonial: cultura indígena, cultura africana, agregados, desclassificados, povo miúdo e a resistência de todos esses marginalizados. Ou ainda, homens de grossa ventura que participavam do grande comércio de escravos, comércio escravista interno entre pequenos agricultores, produção de subsistência no interior profundo do território colonial e etc.

Antes de tudo, seria necessário contextualizar a interpretação de Caio Prado no debate político sobre os rumos que o Brasil do século XX deveria tomar tentando reverter o quadro da dependência externa, assunto amplamente debatido nos anos 30 e 40. Trabalho que dificilmente se vê naqueles que tratam esse autor como cachorro morto. E, depois, ler a idéia de sentido à luz de uma escolha metodológica, outra coisa fora de moda e desnecessária na historiografia hard dos dias de hoje[5]. Sem negarmos os avanços dos trabalhos contrários ao marxismo de Caio Prado, acreditamos que o momento político exige que reforcemos e atualizemos a idéia de sentido.

Lá, Caio Prado lia a evolução histórica brasileira à luz de um horizonte histórico expandido e aberto. Apesar de toda nossa herança colonial entranhada profundamente na população (ausência de nexo moral, raças e indivíduos que mal se unem, não se fundindo num todo coeso), diz o autor: “haverá resultantes secundárias que tendem para algo mais elevado”[6]. Ou ainda, nos anos 60 diante da ditadura militar: “(…) a História de um ponto de vista dialético em cada fato encerra um devenir que o projeta no futuro e na fatal transformação da sociedade”[7]. A movimentação da sociedade pré-golpe emprestava profundidade para o autor pensar uma eminente revolução. Transformação inerente à nossa formação que ele negou nomear a priori: revolução socialista, democrático-burguesa ou qualquer outra.

Aqui, nossa tarefa é demonstrar que o Brasil que nasceu no contexto da expansão dos Estados nacionais da Europa, que funcionou como simples reserva patrimonial, base comercial e produtiva, terreno de operação de força de trabalho compulsório e etc.[8] mas não realizou a expectativa que na conjuntura de Caio Prado parecia ser possível e, digamos assim, o horizonte reduziu-se drasticamente, para falar como o filósofo Paulo Arantes. Ou seja, a idéia de revolução foi colocada para escanteio. Hoje o Brasil é considerado um gigante entre as economias em desenvolvimento, é acusado de imperialista diante das frágeis economias sul-americanas, tem um presidente que de “serial loser” [derrotado sistemático] passou a ser o cara na política internacional e é visto com otimismo pelos analistas econômicos do mundo inteiro: “A maior economia da América Latina desfruta o seu melhor momento em um longo tempo. Um dos últimos países a cair na retração global provocada pelo setor financeiro em 2007, o Brasil também foi um dos primeiros a sair. Pela primeira vez em sua história, conseguiu uma combinação de crescimento econômico, inflação baixa e democracia plena e a boa fortuna parece que deve continuar”[9]. No entanto, podemos aqui repetir essa frase de Caio Prado, pois ainda estamos longe de poder dizer que temos uma sociedade coesa: “Muito poucos elementos novos se incorporarão a este cimento original da sociedade brasileira”[10].

Sim, o Brasil se industrializou e criou as condições para se tornar um importante locus de valorização financeira. Também se transformou em modelo de sucesso do chamado agro-business. E, esse processo de modernização deu novos contornos e tornou ainda mais complexa nossa vida social e política. Todavia, tanto lá como aqui, quem dá as cartas no processo de formação da sociedade brasileira é o capital. No período colonial na forma escravista-mercantil em sua associação ao capital comercial onde a dinâmica entre metrópole e colônia, embora única e entrelaçada, criou uma espécie de dualismo ou sujeito dual[11] onde do lado de cá todo tipo de violência era permitido. Hoje na forma financeira cuja distinção centro/periferia foi internalizada pelas grandes cidades globais[12] e a violência acontece de forma cada vez mais aberta e explícita.

Tudo se concentra nas cidades globais: o processo de valorização do capital, o crescente movimento de diferenciação no mundo do trabalho, o controle dos elementos capazes de ameaçarem a “coesão social”, a proliferação de guetos urbanos (seja a favela onde é jogada a população pobre, seja os grandes condomínios de luxo onde a elite se protege), a violência estatal travestida pela idéia de segurança pública e etc. Cabe então nos perguntar: Qual o sentido dessa decolagem quando o que está em jogo não é só a economia, mas a vida digna da humanidade?

Estrangeiros e assistidos
Diante do cenário que apenas rascunhamos acima podemos levantar alguns exemplos que configuram o modo de funcionamento das urbes insensíveis dos negócios onde os desastres tornam-se oportunidades de investimentos, assim como apontar para o sofrimento de grande parte população que vive nessas grandes cidades, mas que foi rifada do mercado de trabalho e transformou-se em público alvo de programas sociais (12 milhões de assistidos pelo Programa Bolsa Família) ou passou a ser estrangeira, uma escória social que deve ser encarcerada (aproximadamente 500 mil, num crescimento de 89% nos últimos oito anos) ou eliminada diante da generalização da insegurança salarial e social da nova rodada de acumulação capitalista.

Não há nenhuma novidade nas atuais escolhas administrativas do poder público frente às enchentes que a cidade de São Paulo viveu nos dois últimos meses. Em meados da década 60 a cidade permaneceu alagada por dias em decorrência de fortes chuvas, mas a Light, que detinha o monopólio dos serviços de produção e distribuição de energia elétrica, manteve fechada as comportas de sua barragem no Tietê. A lógica era simples: mais água represada, mais hidroeletricidade na usina de Cubatão, mais lucro. O historiador Janes Jorge traz esse e muitos outros exemplos na edição de janeiro da revista Carta Capital. No final de 2009 algo parecido aconteceu: as seis comportas da barragem da Penha, na zona leste de São Paulo, foram completamente fechadas às 2h50 do dia 8 de dezembro, dia em que a cidade enfrentou fortes temporais e viu diversos pontos alagarem como há muito tempo não se via. Somente dois dias depois, às 17h20, todas as comportas foram abertas. Os dados, fornecidos pelo engenheiro responsável pela barragem, João Sérgio, indicam que houve uma clara escolha da empresa responsável: alagar os bairros pobres da zona leste para evitar o alagamento das marginais e do Cebolão, conjunto de obras que fica no encontro dos rios Tietê e Pinheiros[13].

Além da escolha “racional” da administração da cidade de São Paulo em preferir alagar os bairros e evitar que as marginais fossem interditadas, existem outras razões para tal escolha. Os bairros ocupados de forma espontânea pela população sem-teto que estão na margem do rio Tietê precisam ser desocupados para a construção do maior parque linear do mundo que será construído pelo Governo do estado de São Paulo (parque com 75 km de extensão e 107 km² de área passando pelos municípios de São Paulo, Guarulhos, Itaquaquecetuba, Poá, Suzano, Mogi das Cruzes, Biritiba Mirim e Salesópolis).

Moradores de bairros como o Jardim Pantanal, Jardim Romano e Jardim Helena vivem uma situação de grande indefinição. Trata-se de bairros extremamente pobres. O Jardim Helena, por exemplo, tem uma população de 125 mil habitantes e possui uma renda média de 584 reais. A Prefeitura de São Paulo, a fim de retirá-los da região, está oferecendo bolsas aluguéis de R$ 300,00 para os próximos seis meses. Diversas outras regiões da cidade vivem o mesmo dilema.

Se, por um lado, a lógica de exclusão da cidade de São Paulo oferece bolsas para uma parte da população, do outro, apresenta a “tolerância zero” do aparelho penal e da violência policial. O levante de maio de 2006 do Primeiro Comando da Capital (PCC) é um exemplo paradigmático. Escreve Paulo Arantes: “(…) 15 de maio de 2006 se auto-impôs um humilhante toque de recolher por motivo de uma surpreendente onda de ataques cuja cadeia de comando – sem nenhum favor ao trocadilho fácil, porém exato – remontava a uma ordem emanada do interior de um gigantesco sistema prisional rebelado há três dias em pelo menos 73 das 105 prisões semeadas ultimamente no território de todo o estado de São Paulo por uma política de encarceramento de proporções inéditas, mesmo para um país de forte tradição punitiva no trato brutal com os de baixo”.

Mais a frente: “(…) Não é retórica estatística. A renda per capita atual no Brasil é inferior a 1/5 da americana; em 1980 estava próxima de 1/3 e a renda do trabalho representava a metade de toda a renda nacional; enquanto isto, os ricos dobraram quantitativamente, com a particularidade reveladora de que nesta camorra dos endinheirados cerca de 40% chegou a tal condição por meio de herança patrimonial, sendo que tal riqueza deriva cada vez menos de atividades produtivas lícitas. Ocorre que nestes 25 anos de estagnação e desindustrialização, o país se urbanizou em incríveis 80% de sua população. Só que agora faz tempo que urbanização deixou de ser sinônimo de desenvolvimento, mas de favelização e economia informal, quando não francamente ilegal. Sinal de que a fronteira urbana também chegou ao fim, com a conseqüente saturação da terra ocupável, provocando uma onda de marginalização dentro da marginalidade”[14].

A contrapartida estatal a esse levante foi grande. 493 pessoas foram executadas entre o dia 12 e 20 de maio no território de São Paulo. Só a título de comparação, durante os 20 anos de ditadura militar (1964-1984) 424 é o número de mortos e desaparecidos.

Resistência Popular
De forma resumida podemos dizer que o chamado “real miracle” [“milagre real”] festejado por The Economist desregulamentou o Estado Social – que no Brasil nunca existiu de forma plena – e fragmentou a resistência da esquerda histórica. O PT, o maior partido de esquerda do mundo, hoje gere o capital e segue o receituário das políticas mundiais transformando a pobreza em problema administrativo e em momento de oportunidade[15]. Suas dissidências (PSOL e PSTU) se esforçam para reerguer aparelhos – sindicatos, centrais, diretórios estudantis e etc. – agora sem uma base militante. Grandes sindicatos transformaram-se em espaço para o gangsterismo. E movimentos sociais, como o MST, aos poucos vão se tornando movimentos de dirigentes, pois estão perdendo suas bases com o avanço das políticas compensatórias do governo[16].

E entendamos bem, diagnosticar esse momento histórico não é falar mal da esquerda. Tão pouco uma antevisão que muitos “Joãozinhos do passo-certo” ficam profetizando por ai: “A forma partido se esgotou”, “A forma sindicato acabou”. Se o problema fosse somente os partidos e os sindicatos estaríamos muito bem. O problema, discutido seriamente, é que o atual momento histórico talvez tenha mostrado os limites da política representativa e, nesse limite, a esquerda inteira está mergulhada (seja por escolha, convicção, oportunismo, responsabilidade ou simplesmente bom senso). Uma discussão séria sobre isso deveria demonstrar como o caminho até esse limite foi sendo moldado ao longo da história com vitórias e derrotas. Hoje, os partidos disputam o poder, os sindicatos do setor público reivindicam melhores salários e os movimentos reivindicativos (pela reforma agrária, por moradias, pelo passe-livre, por empregos, por direitos humanos) se movimentam e lutam por reconhecimento no interior do Estado.

Acontece que essa luta por reconhecimento se dá no interior não de um Estado Social (marcado por políticas salariais e conquista de direitos), mas dum Estado policial e penal. Daí toda essa discussão sobre criminalização dos movimentos sociais, criminalização da pobreza e coisas do gênero. É nessa nova configuração do Estado com um braço assistencial e outro policial que, digamos assim, nosso interlocutor deve ser expandido. Pois, se é certo que as antigas lutas da classe trabalhadora não devem ser abandonadas, talvez também seja certo que a noção de classe trabalhadora deva ser ampliada, uma vez que a situação anterior da sociedade salarial com direitos conquistados (longe de ser ideal) parece não ter retorno.

Dizemos isso porque talvez seja interessante nos atentarmos para o movimento duma camada social – ainda invisível para a esquerda de “raiz” – lá onde ele pode caracterizar-se como resistência popular frente ao poder do capital.

São vários os exemplos: Nos bairros da zona leste de São Paulo, as famílias atingidas pelas enchentes que se negaram a receber a bolsa-aluguel da prefeitura estão se organizando em diversos movimentos. Na zona sul o mesmo acontece, principalmente após dia 19 de janeiro, quando a população da Cidade Dutra confrontou a polícia por mais de 5 horas. O protesto se iniciou com mais ou menos 100 pessoas na Avenida Teotônio Vilela. Mais tarde, segundo relatos, foi engrossado com a participação de jovens ligados ao tráfico de drogas, pois as enchentes estavam atrapalhando o funcionamento do comércio de drogas na região. O cenário era digno de um “favela movie” [“filme de favela”]. Criança de 13 anos dirigindo um ônibus, meninos com mochilas cheias de molotov queimando ônibus ou jogando-os contra a polícia, barricadas de lixo fechando diversas outras ruas… Nesse mesmo período assistimos também a um monumental confronto de camelôs [vendedores ambulantes] contra a polícia na Rua 25 de Março; o confronto deixou as lojas fechadas das 9h às 15h no dia 11 de novembro. No mesmo centro da cidade, jovens de todos os cantos da cidade misturados com moradores de rua do centro se reuniam semanalmente para protestar contra o aumento da tarifa dos transportes públicos. No dia 10 de janeiro, manifestantes da chamada Rede Contra o Aumento da Tarifa foram duramente reprimidos pela polícia. Por fim, outro evento importante desse final do ano foi a marcha dos imigrantes. Majoritariamente composta por bolivianos, essa movimentação visa questionar a situação de ilegalidade assim como as condições de trabalho a que os imigrantes estão submetidos[17].

Esses diversos exemplos nos permitem repensar a dinâmica das lutas sociais e ao mesmo tempo fugir duma cômoda resposta de que vivemos um período de refluxo ou, como diz a direita, do fim da luta de classes. Claro, nada de profundo parece estar acontecendo, uma vez que a dimensão do político aos poucos está sendo diluída na esfera econômica e a pobreza vai se tornando um problema técnico-administrativo. E sim, também sabemos que essas movimentações que citamos acima são insuficientes e limitadas. No entanto, talvez seja conveniente percebemos que os desempregados, os sem-teto, os camelôs, os jovens periféricos, os imigrantes e todo o povo miúdo descartado do processo de valorização “legal” do capitalismo travam lutas anticapitalistas. O êxito dessas lutas emperraria o livre e desobstruído movimento do capital, ao mesmo tempo que produziria um questionamento profundo sobre a forma de ordenação das grandes cidades.

Conclusão
“Brazil Takes Off” [“O Brasil arranca”]. Descontando ar de deboche [riso] dos vencedores que tal edição carrega, o fato é que essa decolagem do Brasil rumo ao seu inevitável destino de país do futuro tem como contrapartida o encurtamento dum horizonte histórico alternativo, para lembrarmos novamente o diagnóstico do Paulo Arantes.

A idéia de sentido e de formação tinha por detrás a concepção de tempo histórico como contínua superação. Embora Caio Prado afirmasse que poucos elementos novos se incorporaram ao cimento original da sociedade brasileira, a história lhe parecia disponível. Se a idéia de sentido possibilitava ao historiador descrever o que se realizou no longo prazo, a idéia de formação (e devir) abria possibilidades para o agir humano.

Mas hoje tudo se passa como se a idéia de futuro estivesse fora do alcance humano. Fazer política virou uma questão técnico-administrativa. Resistir às forças do mercado se tornou algo insensato, ressentimento de revanchistas e caso de polícia. Os supostos sujeitos históricos e supostas classes revolucionárias não se movimentam nem como sujeitos e nem como classes. O que temos é uma atomização generalizada.

É diante desse cenário catastrófico, produzido pela configuração do capitalismo em sua nova rodada de acumulação – domínio financeira, apartheid das grandes cidades, pobreza administrada, desastres “naturais” como oportunidade de negócios - que devemos restabelecer uma política que devolva a dignidade à vida humana lá onde o capital triunfa.

Notas
[*] Historiador formado pela USP. Texto escrito em fevereiro de 2010.
[1] Tradução da Carta Capital: “Finalmente está dando certo”, “Mudança de hábito”, “A sobrevivência do mais ágil”, “Chegadas e partidas”, “Condenado a prosperidade”, “O autoflagelo do Estado”, “Um presente melhor” e “Duas Américas”.
[2] “Em uma noite de sábado em Canudos, uma cidade de 15 mil habitantes no interior do estado da Bahia cercada por todos os lados por uma floresta seca, prateada, há muito consumo acontecendo. Todos têm telefone celular, umas poucas pessoas possuem carros novos e o happy-hour é animado com cervejas e cachorros-quentes”. Tradução Carta Capital.
[3] “(…) ela é um monumento à indexação”. Tradução Carta Capital.
[4] PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 20° Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 31-32, grifos nossos.
[5] Para uma análise detalhada do cunho filosófico e metodológico da idéia de sentido no texto de Caio Prado ver: GRESPAN, Jorge Luis. A Teoria da História em Caio Prado Jr.. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 47, p. 57-74, 2008. “A “interpretação” não deve inventar sentidos, e sim limitar-se a encontrar o “critério” pelo qual os lados opostos da realidade se “conciliam” na própria realidade. Como vimos, esta tem “aspectos contraditórios”, não sendo nunca unívoca. Por outro lado, o que a “interpretação” faz é formular o “sentido”, ou seja, o “critério” conforme o qual a contradição real se “concilia”, articulando-se de algum modo”. p. 70.
[6] PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 20° Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 32.
[7] PRADO JR, Caio. A Revolução Brasileira. In: Clássicos sobre a revolução brasileira. Ed. Expressão Popular, 2005, p. 38.
[8] Ver: PAULANI, L. Brasil Delivery. São Paulo: Boitempo, 2008.
[9] The Economist (tradução Carta Capital): O Mundo em 2010. Janeiro de 2010, p. 77.
[10] PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 20° Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 341.
[11] Ver: TEIXEIRA, R. A. O capital como sujeito e o sentido da colonização. In: Anais do XXXIII Encontro Nacional de Economia (ANPEC), 2005, Natal-RN. Anais do XXXIII Encontro Nacional de Economia, 2005.
[12] Ver: ARANTES, P. E. . A Fratura brasileira. In: Zero à Esquerda. 1ª. Ed. São Paulo: Conrad Livros, 2004.
[13] Ver: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/17/ult5772u6673.jhtm
[14] ARANTES, P. Duas vezes pânico na cidade. In: Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.
[15] MARANHÃO, Tatiana de Amorim. Governança mundial e pobreza – do consenso de Washington ao consenso das oportunidades. Tese de doutorado. Orientadora: Maria Célia Paoli. São Paulo, 2009.
[16] “De 2003 para 2006, o número de famílias atendidas pelo programa passou de 3,6 milhões para 10,9 milhões. No período, o número de famílias que invadiram terras caiu de 65.552, em 2003, para 44.364, em 2006, enquanto a quantidade daquelas acampadas caiu de 59.082 para 10.259. Isso explica por que 11 organizações de sem-terra desapareceram”. In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1705200916.htm
“Ex-petista e candidato ao governo de São Paulo em 2006 pelo PSOL, Plínio de Arruda Sampaio diz que “há indício forte de que Bolsa Família tira a combatividade das pessoas para lutar pela reforma agrária. É o efeito mais perverso do programa”. Mais à frente: “Gilmar Mauro, da direção nacional do MST, diz que “o programa gera uma certa acomodação no primeiro momento, é um amortecedor, mas não resolve o problema de ninguém”. Ele continua: “Não é uma situação sustentável. No futuro, a pessoa pode querer ou mais dinheiro da bolsa ou um emprego. A situação do país vai melhorar para oferecer um ou outro? Se não, a luta pela terra pode voltar a ser uma opção”.
Já para Ariovaldo Umbelino, o problema é político: “Esta redução deve ser buscada no conjunto das ações dos movimentos sociais e sindicais que colocaram-se ao lado da defesa do mandato de Lula desde os acontecimentos políticos de 2005 [mensalão]”.In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0411200703.htm
Para João Pedro Stedile, o programa não atinge o movimento: “O Bolsa Família é uma política para diminuir a fome de milhares de brasileiros, que estão na miséria e não fazem lutas. Não é a base social do MST. A mobilização em ocupações massivas diminuiu porque a reforma agrária está parada, e as ações do INCRA, mais demoradas. As famílias ficam desanimadas”. In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1801200909.htm
[17] Sobre o trabalho imigrante ver: SILVA, Carlos Freire. Trabalho informal e redes de subcontratação: Dinâmicas urbanas da indústria de confecção em São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2008.

Fonte: http://passapalavra.info/

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