Mais do que um festival, múltiplas formas de resistência em todo o país
Realizado no México em março deste ano, o Festival das Resistências, além de construir as pontes necessárias entre a música e outra formas de expressão artísticas, procurou unir as lutas de “los de abajo”, dos movimentos que estão em luta por um mundo diferente. Por Jóvenes en Resistencia Alternativa
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi, Antonio Conselheiro!
Todos os Panteras Negras!
Lampião sua imagem e semelhança…
eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.
Chico Science & Nação Zumbi/Monólogo ao pé do ouvido
I
Todas as culturas criaram seus instrumentos, suas formas estéticas, seus ritmos, seus cantos, que acompanharam sempre os momentos mais importantes das coletividades: os nascimentos, os ritos de transição, a colheita, a guerra, a morte… a insubordinação, e a rebelião. A tradição latinoamericana é muito rica nesse sentido, e em qualquer lugar aonde a globalização chegou, ela supõe uma grande ameaça para toda língua, música, cultura, história.
Todo esse universo que chamamos de cultura tem enorme significado hoje, sobretudo para aqueles que resistem, lutam e constroem processos de resistência. No México, como em muitos lugares de todo o planeta, “la banda” resiste de múltiplas e insuspeitas formas, no graffiti de parede, na roupa, no corpo, na produção de histórias, na cultura popular e na narrativa musical… é verdade, a cultura é uma arma de luta…
Se o capitalismo invadiu todas as dimensões, materiais e simbólicas, transformando potencialmente tudo em mercadoria, isto quer dizer que a resistência à exploração e à dominação não têm um lugar ou forma privilegiada, que a resistência se constrói a partir de todos os espaços: a terra é arrebatada ao camponês e o trabalhador é subordinado através dos meios de produção privados; os bairros, os povos, são despojados da sua história, da sua memória, para mercantilizar as culturas, para que os meios milenários de trasmissão da identidade e a história se tornem dependentes das corporações ou do Estado.
Justamente, os órgãos corporativos da música e do entretenimento da indústria cultural lutam pela captura e apropiação das energias e relações no âmbito da cultura: a indústria cultural toma conta dos processos de produção subjetiva de povos, comunidades e bairros, e assim os destrói/aproveita. A dominação simbólica (cultural) é hoje uma das formas principais de dominação e nós estamos lutando também (como muitos e muitas) contra ela.
Mas, da mesma forma que a terra e as fábricas… Se a palavra de ordem dos sem terra (Ocupar!, Resistir!, Produzir!) tornou-se programa global, então podemos dizer também: a luta de classes começa no corpo que trabalha, que sente a fome, o desprezo, que se põe em marcha para se libertar daquilo que o oprime, que sente e sofre a dominação e resiste-constrói a insubordinação… e também no corpo que dança, pula, e sente a alegria…
II
A organização de grandes festivais massivos de rock surgiu no México como forma organizativa no contexto das formas de solidariedade com o levante zapatista de 1994. Desde então, muitos foram organizados, por distintas articulações de músicos e organizações sociais e coletivos de solidariedade. Com a música, a proposta foi sempre difundir a luta zapatista, gerar recursos econômicos e construir a solidaridade junto com centenas e talvez milhares de pessoas que organizaram esses festivais massivos, dos quais fomos e somos parte [1], impulsionados de forma autônoma e autogestiva, independente de governos, partidos políticos e corporações.
O Festival das Resistências, herdeiro dessa tradição, foi uma iniciativa para dar visibilidade e apoiar 10 movimentos sociais, indígenas, camponeses, populares e de trabalhadores mexicanos [2]. Como muitos outros, nosso coletivo respondeu em 2005 ao chamado do Exército Zapatista na Sexta Declaração da Selva Lacandona, que convoca a um processo de organização e luta popular, chamado de “Outra Campanha”. Enfrentando um complexo contexto sociopolítico e uma forte repressão, que só vem aumentando durante os 4 anos do governo Calderón, as organizações da esquerda não institucional, anticapitalistas e de esquerda mais radical vêm tentando se articular de diversas formas. Nesse contexto, nosso coletivo conseguiu sobreviver e manter relações de apoio e solidariedade com várias dessas organizações, e participar de algumas iniciativas de articulação. Foi dessa forma que se teceram as relações com as organizações que foram agora apoiadas pelo Festival.
III
Este aconteceu, finalmente, depois de um complexo processo organizativo, no passado 13 de março. Assistiram a ele mais de 11 mil pessoas, com uma participação de 250 artistas e de cerca de 750 pessoas nas tarefas de organização e logística, que foram coordenadas pelo Frente Popular Francisco Villa-UNOPII (organização política de massas, de moradores e trabalhadores da periferia da cidade) e integrantes e colaboradores do coletivo Jóvenes en Resistencia Alternativa (JRA), sendo transmitido por 9 rádios mexicanas e 4 internacionais: Chile, Barcelona, Itália e Brasil (neste último, pela Rádio UFSCAR), além de ter sido transmitido por vários sites na internet, conseguindo um ampla repercussão política e na mídia [3].
Os objetivos políticos do Festival foram: 1) Difundir a luta de diversos movimentos em luta contra projetos do grande capital, ignorados pela grande mídia, invisibilizados pela academia e criminalizados pelos governos estaduais e federal, criando, mais do que um festival, um acontecimento político, resultado do processo organizativo de construção, involvendo nele os próprios músicos, alguns dos quais vêm participando deste tipo de iniciativas desde 1994; mas, sobretudo, pelo processo transitório de articulação de lutas de diversos cantos do país, com um peso político e simbólico bem importante no momento atual, em que a dinâmica do capital e do processo de integração total ao nosso vizinho do Norte [4] estão levando ao extremo a destruição do tecido social e das estruturas coletivas, criando um cenário de anomia e descomposição social terrivelmente perigoso; e 2) apontar para a geração de recursos econômicos para projetos de saúde, educação, comunicação, formação e produção dos diversos movimentos e organizações. Em relação a este objetivo, conseguiu-se um sucesso econômico total, gerando uns $730,000 pesos mexicanos (aproximadamente uns R$105.000), a serem divididos entre as 10 lutas e organizações (pois foram incluídas, por consenso entre os organizadores, as Juntas de Bom Governo Zapatistas) [5].
Ambos os objetivos foram atingidos, mas é importante sublinhar o intenso trabalho organizativo que esteve por trás deste resultado. Para além das atividades que o coletivo tem desenvolvido durante 2008 e 2009, o Festival das Resistências envolveu um processo de construção de quase dois anos, que se dividiu em várias fases: a construção da proposta e dos objetivos políticos, o processo de re-aproximação com os músicos para ajustar uma data e a apresentação da proposta às lutas. O aspecto financieiro a levar em conta é que, de fato, os gastos de produção (que se elevaram a uns $700,000 pesos mexicanos, cerca de R$100,000) só foram pagos, na sua maioria, no dia do evento, constituindo portanto uma aposta de grande risco, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista político. Previamente, o coletivo e os colaboradores fizeram uma “vaquinha” [fundo coletivo], para os gastos de divulgação: 350.000 panfletos que foram distribuídos na cidade por compaheirxs e organizações solidárias em todos os cantos da cidade, 20.000 cartazes colados e 100 paredes que foram pintadas por duas equipes de “profissionais”.
O lugar do Festival foi alvo de uma negociação com o governo da cidade, na qual teve um papel de pressão a Frente Popular Francisco Villa, enquanto organização de massas, mas, pressionado pelo corporativo da indústria cultural OCESA, o governo não abriu mão. Entretanto, o deportivo do Sindicato Mexicano de Electricistas, no sul da cidade, abriu o jogo…
Finalmente, no passado 28 de março, teve lugar a ceremônia de entrega de recursos aos movimentos, um emocionante momento em que reunimo-nos de novo, ativistas e organizações, músicos, coletivos de graffiti e artes cénicas, no assentamento “La Polvorilla”, da Frente Popular Francisco Villa Independente. Com esta iniciativa, para além de construir as pontes necessárias entre a música e outra formas de expressão artísticas e culturais, procuramos unir as lutas de “los de abajo”, os movimentos que estão em luta por um mundo diferente [6]. Aliás, obtivemos um triunfo na disputa pelos espaços urbanos, contra o governo da Cidade (que se chama a si próprio de esquerda) e o corporativo OCESA; ganhando um espaço para gritar nosso descontentamento contra a militarização do país; contra a crescente miséria e desigualdade; para demonstrar que nós, jovens, sabemos nos organizar, que não precisamos de policiais para nos cuidar, para construir nossas vozes através da música, da dança, do graffiti, da expressão cênica; através da organização autônoma, horizontal e coletiva, sem necessidade de estruturas burocráticas, construindo articulação com outras organizações em luta contra o capitalismo, gerando um processo de convergência com o movimento de mídia livre, para dizer que existem muitas resistências em todo o país e em todo o mundo, para dizer que resistimos e seguimos…
autogestão! autonomia! horizontalidade!
jóvenes en resistencia alternativa México DF (Cidade Monstruo), março-abril 2010
Notas:
[1] Uma breve história sobre os festivais massivos em solidariedade com o movimento zapatista no: http://espora.org/jra/index.php?option=com_content&task=view&id=238&Itemid=1
[2] Conheça os movimentos e lutas mexicanas: http://espora.org/jra/index.php?option=com_content&task=view&id=236&Itemid=1
Confira a declaração política de organizações, movimentos e músicos no Festival: http://www.youtube.com/watch?v=cCxvCz0C48o&feature=related
[3] Confira outras matérias sobre o Festival das Resistências; em La Jornada, jornal mexicano: http://www.jornada.unam.mx/2010/03/13/index.php?section=politica&article=011n1pol http://www.jornada.unam.mx/2010/03/14/index.php?section=politica&article=008n1pol em Telesur: http://www.youtube.com/watch?v=PWt5z81L9Mg
[4] Essa é a expressão “política” do atual proceso de acumulação por despossessão no nosso país, da destruição da nossa soberanía alimentar, da devastação ecológica, da submissão da elite política, da violência estatal e da militarização (disfarçada de “guerra contra as drogas”) contra os movimentos sociais, os jornalistas, as mulheres, as comunidades indígenas, e em geral contra toda a população civil que vive o nosso país. Escute aqui a secretária de Seguranca Interior dos Estados Unidos, Janet Napolitano, falar sobre sobre as novas diretrizes e formas de “colaboração” do governo mexicano na “luta contra as drogas”: http://www.npr.org/templates/player/mediaPlayer.html?action=1&t=1&islist=false&id=125143645&m=125142817 (versão em inglês). Confira, de outra parte, o secretário do Ministério da Defesa do México, chamando de “danos coleterais” as mortes de civis, resultado de enfrentamentos entre o Exército e traficantes: http://www.jornada.unam.mx/2010/04/13/index.php?section=politica&article=005n1pol
[5] Confira o resumo do informe financeiro, galeria de imagens e mais informações sobre o Festival em: www.espora.org/jra
[6] Escute os áudios dos grupos e bandas participantes no Festival http://vientos.info/cml/audios/conciertofestivalresistencias
Fonte: http://passapalavra.info/
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