O alerta verde: a criação do novo inimigo muçulmano
Os eventos do 11 de Setembro criaram as bases para o surgimento de uma terrível forma de islamofobia que facilitou os objetivos dos Estados Unidos de construção de império no século 21. Esta forma de islamofobia concentrou-se no inimigo "lá fora", contra o qual os EUA tinham supostamente de ir à guerra para se proteger, do Afeganistão ao Iraque.
Como George W. Bush disse notoriamente, "nós os combatemos lá, portanto não precisamos combatê-los aqui". Ou como ele afirmou em seu discurso na academia militar de West Point em 2002: "Precisamos travar a batalha contra o inimigo em seu território, frustrar seus planos e enfrentar as piores ameaças." Em resumo, uma infindável "guerra ao terror" contra o inimigo além das fronteiras dos EUA estava então justificada, na visão de Bush.
Esta iniciativa levou à prisão e ao assédio de inúmeros árabes e muçulmanos inocentes em todo o território norte-americano, onde comunidades inteiras foram postas sob suspeita, quando não criminalizadas, no rastro do 11/9.
Mas a reação contra os muçulmanos foi ainda mais forte em vários países europeus. Os conservadores do continente argumentaram que os muçulmanos não estavam adequadamente "integrados" à sociedade e, portanto, eram suscetíveis à propaganda jihadista. Liberais e social-democratas ecoaram esses argumentos com frequência.
Esta dimensão da islamofobia agora chegou aos EUA. Ao longo dos últimos oito meses, uma série de casos que receberam grande atenção levou a um furor midiático em torno do "terrorismo feito em casa". Com isso, a mídia não se refere aos lunáticos da Milícia de Michigan ou do movimento Tea Party, mas sim a uma série de casos envolvendo cidadãos ou residentes muçulmanos nos EUA acusados de planejar ou participar de atividades terroristas.
Seja planejada ou acidental, essa exposição na mídia resultou em uma nova variação da islamofobia e da política do medo que guarda um paralelo notável com o Alerta Vermelho da Guerra Fria. Como o Alerta Vermelho, este novo "Alerta Verde" (a cor se refere aqui ao Islã, e não aos ambientalistas) também busca promover o medo e a desconfiança em relação a nossos amigos, vizinhos e colegas de trabalho.
A mais virulenta expressão do "Alerta Verde" foi articulada por Tunku Varadarajan, professor da Universidade de Nova York. Em um artigo intitulado "Virando muçulmano", publicado em novembro de 2009 no site Forbes.com, Varadarajan argumentou que o fato que precipitou a tragédia de Fort Hood – onde o major Nidal Hasan disparou uma arma contra seus colegas e matou 13 – não foi o assédio racista que Hasan sofria no Exército ou a fragilidade emocional decorrente do trabalho excessivo como psiquiatra militar, e sim uma condição que o acadêmico vê como inerente a todos os muçulmanos: a tendência à violência.
Ele argumentou que Hasan não "virou carteiro" - isto é, não entrou em crise e se tornou violento, como às vezes ocorre com funcionários do correio. Na verdade, disse o professor, Hasan simplesmente pôs em prática, de modo frio e calculista, os ensinamentos do Islã.
Varadarajan escreveu: "Esta expressão ('virando muçulmano') descreveria o evento no qual um muçulmano norte-americano supostamente integrado – um amigável vendedor de rosquinhas em Nova York, digamos, ou um oficial do Exército dos EUA em Fort Hood – deixa de lado sua aparente integração à sociedade norte-americana e opta por vingar sua religião em um ato de violência messiânica contra seus companheiros norte-americanos."
Em resumo, Varadarajan argumenta que todos os muçulmanos norte-americanos são "iminentemente violentos" e, embora pareçam integrados à sociedade, na verdade são bombas-relógio que inevitavelmente explodirão em um acesso de fúria violenta e assassina. O professor apoia seu ponto de vista nas ações de Hasan e Najibullah Zazi (o "amigável vendedor de rosquinhas"), escolhidos para representar todos os muçulmanos norte-americanos.
O caso de Zazi, cidadão afegão e residente legal nos EUA que foi preso em setembro de 2009 sob acusações de conspiração para usar "armas de destruição em massa", recebeu atenção significativa da mídia.
Um mês depois, o cidadão norte-americano David Coleman Headley foi preso por planejar um ataque contra o jornal dinamarquês que havia publicado cartuns racistas sobre o profeta Maomé. Acredita-se que Headley também esteve envolvido com o Lashkar-e-Taiba, grupo paquistanês que promoveu os ataques de 2008 em Mumbai. Em dezembro de 2009, cinco jovens da Virgínia, todos cidadãos norte-americanos e alguns nascidos nos EUA, foram presos no Paquistão por ter viajado ao país para trabalhar com o Talibã.
A rápida sucessão desses casos e a atenção da mídia noticiosa inaugurou um novo léxico em torno do "terrorismo feito em casa". O jornal The Washington Post fez um comentário típico: "As prisões ocorrem em um momento de preocupação crescente com o terrorismo feito em casa, depois do recente tiroteio na base militar de Fort Hood, no Texas (o caso de Hasan), e acusações feitas nesta semana contra um homem de Chicago (Headley) por envolvimento nos ataques terroristas do ano passado em Mumbai." Assentavam-se as bases para o novo "Alerta Verde".
Afeganistão
Para o governo Obama, esses casos de grande repercussão na mídia ofereceram o contexto perfeito para o anúncio da escalada da guerra no Afeganistão. O próprio Obama liderou a ofensiva em dezembro de 2009, em um discurso em West Point:
"Estou convencido de que nossa segurança está em jogo no Afeganistão e no Paquistão. Este é o epicentro do extremismo violento praticado pela Al-Qaeda. Foi a partir daí que fomos atacados em 11/9 e é aí que novos ataques são tramados enquanto falo. Não se trata de um perigo inativo; não se trata de uma ameaça hipotética. Só nos últimos meses, detivemos dentro de nossas fronteiras extremistas enviados da região fronteiriça do Afeganistão e Paquistão para cometer novos atos de terror."
O discurso de Obama não faz referência direta ao "terrorismo feito em casa". Mas explora o medo do 11/9 e a ameaça do terror "vindo para casa", assim como os discursos de Bush citados acima.
Ele também se apoia no contexto criado pela cobertura noticiosa dos casos de Zazi, Headley e da Virgínia, todos relacionados ao Afeganistão e ao Paquistão. Assim, a referência de Obama aos "extremistas dentro de nossas fronteiras" reforça o falatório sobre o grave perigo que o terrorismo e o "extremismo violento" supostamente representam para os cidadãos dos EUA. Convenientemente, esta ameaça também serviu para justificar o envio de mais 30 mil soldados ao Afeganistão.
Realidade é diferente
A realidade, contudo, entra em choque direto com essa retórica. A "ameaça" do "terrorismo global" contra os norte-americanos é mínima, e mesmo esta ameaça desprezível tem diminuído junto com o número de "complôs terroristas" ao longo dos últimos cinco anos. Como muitos especialistas observaram, tem ocorrido um declínio dramático e constante desde 2004, com apenas um ligeiro aumento nessa tendência geral em 2009. A opinião pública também se voltou contra essas atividades nos países de maioria muçulmana.
Até mesmo Gregory Treverton, do instituto direitista Rand Corporation, admitiu que o perigo do "terrorismo" para os norte-americanos é limitado. Em artigo publicado no jornal Los Angeles Times, ele observou que, "nos cinco anos posteriores a 2001, o número de norte-americanos mortos por ano em ataques terroristas no mundo não passou de 100, e o saldo em determinados anos mal atingiu dois dígitos. Compare-se isso com uma média de 63 mortos por tornados, 692 em acidentes de bicicleta e 46.616 em acidentes envolvendo veículos motorizados". De fato.
Além disso, afirma o relatório sobre terrorismo divulgado em abril de 2009 pelo Departamento de Estado, "a Al-Qaeda (AQ) e as redes associadas continuam a perder terreno, tanto estruturalmente quanto aos olhos da opinião pública mundial". Não obstante, o relatório declara que essas organizações "continuavam sendo a maior ameaça terrorista aos EUA e seus aliados em 2008".
O que tudo isso revela não é apenas a desconexão entre a retórica e a realidade, mas também a mecânica envolvida na mobilização de uma política do medo. O resultado final é um "Alerta Verde" que atende a pelo menos dois objetivos: justificar a existência de medidas draconianas como aquelas introduzidas pelo Ato Patriótico e conquistar apoio público para as guerras no exterior - não só no Iraque e no Afeganistão, mas potencialmente no Iêmen e em outros países.
Em resumo, a nova islamofobia ou "Alerta Verde" funciona de modo bastante similar ao "Alerta Vermelho" da Guerra Fria, quando o medo do comunismo era suficiente para justificar a caça às bruxas e o policiamento da dissidência doméstica promovidos por McCarthy, ao mesmo tempo conquistando apoio para as guerras na Coréia e no Vietnã.
O mais sensacional tratamento midiático do "terrorismo feito em casa" se concentrou no recente caso de "Jihad Jane". Se o episódio do norte da Virgínia inspirou especulações na imprensa sobre o que teria levado cinco rapazes "normais" a lutar ao lado do Talibã, o caso de Colleen LaRose – uma mulher branca, miúda, loira e de olhos verdes – causou um verdadeiro frenesi na mídia. LaRose, que se converteu ao Islã, foi indiciada por conspiração para cometer atos terroristas na Europa.
Ilustrando o tom de várias reportagens veiculadas pela mídia, um correspondente da CNN concluiu que "o indiciamento de Jihad Jane destrói qualquer ideia de que podemos identificar um terrorista apenas pela aparência". À semelhança dos vermelhos que espreitavam em nossas vizinhanças, escolas e locais de trabalho, os "verdes" como LaRose - que, segundo somos informados, constumavam viver "misturados" ao norte-americano médio - são a nova ameaça. Ao cobrir essa história, a grande mídia chegou perto do tipo de argumento promovido por Vardarajan e outros ideólogos direitistas.
A série de casos também motivou relatórios como aquele divulgado em março passado pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. Concentrando-se em Zazi, Headley e Hasan, assim como nos casos do norte da Virgínia e outros de Minnesota, o relatório sugere que os EUA precisam reprimir a "radicalização da internet" e continuar a "minar" a história do "choque de civilizações" usada pela Al-Qaeda em suas campanhas de recrutamento.
O relatório observa, em tom de aprovação, que "funcionários da Casa Branca já descartaram expressões como 'guerra contra o Islã radical'". Mas os autores acrescentam que tais gestos retóricos são insuficientes diante da realidade da guerra. O desafio fundamental, diz o documento, é "como equilibrar a necessidade de combater o terrorismo global [leia-se: expandir o império] e as desvantagens da intervenção militar direta em grande escala [leia-se: vítimas em grande escala e os problemas da ocupação]".
Desafios de Obama
De fato, este é o desafio herdado pelo governo Obama. O atual presidente pode ter abandonado o uso de expressões como "guerra ao terror" e amenizado parte da pior retórica islamofóbica do governo Bush, mas deu continuidade ao projeto de dominação imperial.
A islamofobia é o braço ideológico deste projeto e Obama vai usá-lo quando necessário. Não nos esqueçamos de que, "acusado" de ser muçulmano durante a campanha eleitoral, ele se "defendeu" em vez de assumir uma postura de princípios em respeito ao Islã e à liberdade religiosa. Aquele momento apenas fortaleceu o racismo cultural da direita e parece ter contribuído para a nova islamofobia.
O Alerta Vermelho destruiu as vidas de muita gente e criou um clima de intimidação e medo. Hoje, o nascente "Alerta Verde" tem um potencial similar. Ele pode, no entanto, ser combatido com sucesso por uma esquerda capaz de enxergar além do deslumbramento com o Prêmio Nobel da Paz de Obama e expor o projeto imperialista dos EUA como ele é.
No fim das contas, o Alerta Vermelho e o macarthismo foram derrubados pelos movimentos sociais dos anos 1960. Precisamos enfrentar uma ameaça similar hoje.
*Deepa Kumar é professora adjunta de jornalismo e estudos da mídia na Universidade Rutgers. Trabalha atualmente em um livro sobre a política externa dos EUA, o Islã político e a notícia. Artigo originalmente publicado no site Common Dreams
Fonte: http://www.operamundi.com.br/
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