A memória de Rachel Corrie e a imagem de Israel
O assassinato, há sete anos, em Gaza, da militante estadunidense Rachel Corrie por um bulldozer militar trouxe para os noticiários o barbarismo da política israelita. Está em curso o processo cível da família contra o Estado de Israel. Este, ao mesmo tempo que ignora as leis internacionais de direitos humanos, tenta organizar a mentira numa “batalha pela narrativa”. Por Neve Gordon [*]
Fez agora sete anos que Rachel Corrie foi morta por esmagamento por um bulldozer Caterpillar D9R israelita quando se opunha pacificamente à demolição de casas palestinianas em Rafah, na Faixa de Gaza, juntamente com outros membros do International Solidarity Movement (ISM). Agora, os seus pais, irmã e irmão processaram o Estado de Israel e o ministro da Defesa, acusando-os de morte culposa.
O objectivo do processo, segundo a mãe de Rachel, Cindy, “é mostrar que é preciso pedir responsabilidades pelos milhares de vidas perdidas, ou gravemente incapacitadas, pela ocupação [israelita]… Esperamos que o processo chame a atenção para a repressão contra activistas não-violentos pelos direitos humanos (palestinianos, israelitas e internacionais) e para o facto de tantas famílias palestinianas, tanto ou mais atingidas do que as nossas, não terem acesso aos tribunais israelitas.”
O ministério público [israelita] decidiu usar de todas as armas para minar o processo de Corrie. Alega que não há provas de que os pais e os irmãos de Corrie sejam de facto os seus herdeiros legais; argumentam que ela “ajudou a atacar soldados israelitas”, “tomou parte em actividades beligerantes” e estava na companhia de homens armados que atacaram soldados israelitas. Em defesa dos soldados, os seus advogados escrevem mesmo que o Estado “denega a dor e o sofrimento dos que morreram, as perdas de prazeres e de longevidade”.
Os advogados do Estado israelita demonstram uma vez mais que, quando vencer é tudo, a vergonha se torna supérflua.
Ao mesmo tempo que o processo civil de Corrie decorre num tribunal de Haifa, o filme Rachel de Simone Bitton está sendo exibido na Cinemateca de Telavive. Contribuindo para publicitar o julgamento, o filme de Bitton é subtil e nuancé, apresentando além disso duas narrativas, a do Estado de Israel e a outra, dos activistas do ISM e das testemunhas oculares palestinianas que estavam com Rachel nesse dia fatídico.
Num momento de auto-reflexão, o filme revela que cerca de uma hora depois de Rachel ter sido morta por esmagamento, Salim Najar, um lavador de ruas palestiniano, foi morto por um atirador furtivo israelita em Rafah. O caso é importante porque mostra como o sangue palestiniano tem pouca importância – nenhum média se dignou noticiar o assassinato e, como refere a própria Bitton, ninguém irá fazer um filme sobre Najar. Este caso também ajuda a mostrar que Rachel se tornou um ícone “palestiniano” de outro tipo assim como um símbolo da luta por justiça social. Ela dedicou a última parte da sua curta vida à causa palestiniana e, depois de ter sido morta, a memória do seu trabalho pelos direitos humanos em Rafah ajudou a internacionalizar essa luta. A memória de Rachel tornou-se assim um lugar onde várias outras lutas prosseguem.
Os companheiros em vão tentam socorrer Rachel Corrie, que acaba de ser esmagada pelo bulldozer militar israelita.
O governo israelita sempre reconheceu a importância de lutar pelo domínio das narrativas; é particularmente sensível às histórias – como a da morte de Rachel Corrie – que tomam proporções globais e por isso influenciam a imagem internacional de Israel.
Essa batalha é considerada tão importante que, em 2004, o ministério israelita dos Negócios Estrangeiros criou a campanha Brand Israel cujo objectivo era alterar a imagem de Israel no sentido de um país de inovações médicas, científicas e tecnológicas. Durante anos, foram canalizados milhões de dólares para firmas internacionais de Relações Públicas; essas firmas aconselharam o ministério a chamar a atenção para os cientistas israelitas da investigação das células estaminais ou para os jovens peritos de informática que deram ao mundo o Instant Messaging, ao mesmo tempo que passavam para segundo plano o conflito israelo-palestiniano esbatendo a relação directa de Israel com os muros de betão, as torturas, o terrorismo, as demolições de casas e as execuções extra-judiciais.
Apesar disso, depois do ataque do ano passado a Gaza e da subsequente publicação do Relatório Goldstone, os proponentes do Brand Israel perceberam que não estavam a conseguir desviar as atenções dos casos relacionados com o conflito. Fazendo marcha atrás, alegaram que o primeiro objectivo devia passar a ser “ganhar a batalha das narrativas”.
A tecnologia mais avançada – como o Twitter, o Youtube e o recém descoberto “Megafone Internet” – foi de imediato adoptada pelos militares e pelo ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel para contrariar as imagens de destruição massiva que chegavam de Gaza. Ao mesmo tempo, foi tornada mais pressionante a estratégia de etiquetar como anti-semita quem quer que criticasse as políticas israelitas e, na Universidade Bar Ilan, Gerald Steinberg desenvolveu uma variedade de métodos para deslegitimizar as organizações de direitos humanos que documentam a ocupação israelita e para, ao mesmo tempo, condenar os apoiantes financeiros dessas organizações.
Parece, todavia, que isso não era o bastante. Agora, os ataques são direccionados, não apenas contra os mensageiros – nomeadamente os grupos de direitos humanos e as pessoas que, como Rachel Corrie, evocam as leis internacionais para protestar contra a natureza abusiva das políticas de Israel –, mas também contra a própria legitimidade das leis internacionais de direitos humanos. As leis internacionais são agora consideradas como um problema grave, porque são usadas para criticar a violação por Israel dos direitos humanos nos territórios ocupados e são um obstáculo para certas estratégias da guerra contra o terrorismo, como a tortura. O bem conhecido tropo segundo o qual Israel está apenas a defender-se encontra-se também no núcleo destas alegações.
Quando, para conseguir vencer a batalha das narrativas, os activistas pela justiça social, como Rachel Corrie, são qualificados de terroristas e as leis internacionais de direitos humanos se tornam inimigas do Estado, então torna-se bem claro que algo está terrivelmente errado. No momento em que os judeus de todo o mundo se reunem para celebrar a Páscoa judaica, a libertação dos hebreus da escravidão e o começo de uma vida em liberdade, eles deveriam ter presentes as últimas palavras ditas por Rachel Corrie à sua mãe : “Penso que a libertação da Palestina poderia ser uma incrível fonte de esperança para os povos que lutam em todo o mundo. Penso que também poderia ser uma enorme inspiração para o povo árabe no Médio-Oriente, que está a lutar sob regimes antidemocráticos apoiados pelos EUA…” Este ano, ao sentarem-se à mesa da Páscoa judaica, os judeus deveriam levar a peito as palavras de Rachel Corrie.
[*] Neve Gordon dirige o departamento de Política e Governação na Universidade do Neguev, em Israel. É um conhecido activista dos direitos humanos, o que o tem levado a posições de crítica frontal ao Estado de Israel. O seu livro mais recente tem o título Israel’s Occupation [University of California Press, Berkeley CA, ISBN 0520255313 (2008)]. A versão original deste artigo (em inglês) foi publicada em 18 de Março de 2010 no ZSpace, aqui. Tradução do inglês: Passa Palavra.
Fonte: http://passapalavra.info/
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