terça-feira, 2 de março de 2010
Antonio Candido: Mindlin não era bibliófilo. Era intelectual
Antonio Candido: Mindlin não era bibliófilo. Era intelectual
Claudio Leal
O jovem leitor José Mindlin embarcou na aventura de uma biblioteca com a artimanha de bibliófilo precoce. Nos sebos de São Paulo, antes dos 20 anos, ele percebeu que os vendedores desconheciam o acervo dos concorrentes. "Um vendia por 5 ou 10 mil réis o que o outro vendia por 30 e até 50 mil réis", conta em "No mundo dos livros", obra voltada para o leitorado juvenil, lançada em 2009.
O engenho consistia em pedir um investimento inicial ao pai e deslizar na diferença de preços. Comprava o alfarrábio em algum sebo mais em conta e o deixava em consignação na livraria que cobrava um valor superior. Única exigência: não queria dinheiro, mas somente o saldo favorável de livros. Queimando essa gordura pecuniária, o judeu José Mindlin atendeu à voracidade de leitor. "O que me motivava era o interesse pela leitura, que continua sendo, aliás, o fator primordial em minhas garimpagens", ressaltou.
Morto aos 95 anos, em 28 de fevereiro, no Hospital Albert Einstein (SP), Mindlin é reconhecido pelo crítico literário Antonio Candido como um intelectual vinculado à paixão da leitura. Desse vício incontornável nasceria a maior biblioteca privada do Brasil.
- Fala-se que José é um bibliófilo. Ele não era propriamente um bibliófilo. José era um intelectual que colecionava livros. É diferente - estabelece Antonio Candido, 91 anos, prefaciador de "Uma vida entre livros", as memórias de Mindlin.
Distante de entrevistas, nos últimos anos, o autor de "Literatura e Sociedade" aceitou dar um depoimento sobre o amigo de cinco décadas.
Noutro fragmento de memória, Mindlin reforça o perfil traçado por Antonio Candido: "Devo esclarecer, no entanto, que a paixão predominante sempre foi a leitura. Desde a adolescência tinha sempre um livro comigo, aproveitando todos os momento vagos para a leitura. Aprendi que se pode ler em qualquer lugar, como por exemplo em aulas menos interessantes... Cursei a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, de 1932 a 1936, e muitas vezes me sentava no fundo da sala, enquanto os professores liam monotonamente suas preleções, para aproveitar o tempo lendo grandes obras da literatura universal".
Fundador do grupo Metal Leve, do setor de peças automotivas, Mindlin foi um dos raríssimos magnatas que se recusaram a pôr dinheiro no chapéu do empresário Hening Boilensen, o tesoureiro da Operação Bandeirantes (Oban), organizada no II Exército para exterminar a esquerda armada. À frente da Secretaria da Cultura de São Paulo, ele também se recusou a demitir o jornalista Wladimir Herzog da TV Cultura. Antonio Candido destaca os gestos dignos:
- Ele foi daquele grupo de empresários, cinco ou seis empresários que tomaram uma posição contra a ditadura militar muito claramente. Naquele tempo, era preciso muita coragem. Não me espanta que ele tenha tomado uma posição contra a operação Oban.
Além do amor aos livros e à difusão da cultura, ficará a integridade. Confira a conversa com Antonio Candido:
Terra Magazine - Qual a importância de José Mindlin para a vida cultural brasileira?
Antonio Candido - Eu acho que José Mindlin é das poucas pessoas das quais se pode dizer que deixa um vazio completo. Porque ele é um homem muito culto, apaixonado por todas as formas de cultura, muito sociável, muito generoso, ajudava a quem podia. Tinha uma grande paixão pela vida cultural. De maneira que ele participava de lançamentos de livros, concertos, conferências, peças de teatro. Estava sempre presente, sempre com muita alegria, com bom humor, vendo as coisas pelo lado melhor. Discretamente, o José foi um agente cultural de muita importância aqui em São Paulo. Ele provou isso, num cargo público, quando foi secretário de Cultura. Não foi muito tempo, mas foi um excelente secretário. Muita coisa que ele fez, transformadora, está aí para as pessoas verificarem.
Também no Cultura Artística.
No setor da cultural em geral, em São Paulo. Ocupava com muita eficiência um grande espaço cultural. A morte dele é uma grande sensação de vazio.
Antes dele, no Brasil, havia algum intelectual engajado dessa forma na formação de um acervo de livros, como colecionador?
Eu não conheço. Deve ter havido. O José, na minha experiência, é um caso único. Fala-se que José é um bibliófilo. Ele não era propriamente um bibliófilo. José era um intelectual que colecionava livros. É diferente. Ele lia muito, era muito culto. Inclusive, escrevia muito bem, era excelente conferencista, falava muito bem. O livro dele sobre a vida com os livros é encantador.
"Uma vida entre livros".
Um livro encantador, admiravelmente bem escrito. Digo sempre: José Mindlin não era um bibliófilo. Ele era um intelectual de pleno direito que colecionava livros, o que não é frequente.
Quando o senhor o conheceu?
Conheci quando éramos moços. Nossa grande amizade começou mais tarde, há uns cinquenta anos mais ou menos.
Como empresário, ele se recusou a cooperar com a Oban (Operação Bandeirantes), em São Paulo?
Não sei. Não me espanta. Eu sei que, me lembro perfeitamente, ele foi daquele grupo de empresários, cinco ou seis empresários que tomaram uma posição contra a ditadura militar muito claramente. Naquele tempo, era preciso muita coragem. Ele, Celso Lafer, esqueci o nome dos outros, mas merecem ser lembrados. Eram cinco ou seis. Não me espanta que ele tenha tomado uma posição contra a operação Oban, porque ele sempre foi contra a ditadura militar e seus excessos.
Terra Magazine
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