Jorge de Sena: No cerne do real
Dois poemas de Jorge de Sena. Não foram escritos nos dias que correm em Portugal. Mas parece. Por Passa Palavra
Portugal encontra-se, neste momento, mergulhado numa sopa de escândalos, mediáticos e mediatizados, que envolvem o Partido Socialista no poder e o Partido Social-Democrata na oposição - o centrão que se tem revezado na governação deste país desde o fim do período revolucionário de 1974-1977.
Não se pretende aqui descrever nem analisar esses escândalos, que se sucedem ao ritmo dos golpes e contra-golpes de bastidores, e que põem a nú as relações informais entre elites políticas, grupos económicos, magistrados e jornalistas. São os tais «canais de decisão ocultos e informais [que] se tornaram mais importantes do que as estruturas oficiais» (”Pontos de Partida” do Colectivo Passa Palavra, ponto 8). Eles permitem à classe dominante, superando a pura formalidade do “normal funcionamento das instituições democráticas”, ir governando os seus interesses por fora dessas mesmas instituições.
O nosso fito, aqui, é tão só apresentar, a quem não os conheça, dois poemas do poeta português Jorge de Sena, auto-exilado e falecido em 1978, que viveu muitos anos no Brasil e depois na Califórnia [ver, em baixo, Nota sobre Jorge de Sena].
Como sempre, a poesia, buscando o cerne do real e nele mergulhando, parece capaz de prever tudo o que acontece.
1
Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou nem sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.
Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
– podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos (1) –
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de um umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.
2
De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado
ou para melhor êxito
nas negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.
Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram sempre desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.
Porque, se há algum segredo na vida pública
que todos não podem saber
é porque alguém, sem saber,
é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou o fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam decentemente
senão aos maus actores.
Nota sobre Jorge de Sena
Jorge de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Barbara [Califórnia], 4 de Junho de 1978) foi poeta, dramaturgo, ficcionista e historiador da cultura. Não se filiando em nenhuma escola literária, foi influenciado por várias correntes (nomeadamente pelo surrealismo, sobretudo em aspectos técnicos), numa tentativa de superar as tendências da época que passou por várias formas de experimentalismo. No entanto, a estes aspectos modernos da sua poesia aliou recursos da tradição medieval e renascentista, tornando a sua obra, simultaneamente, clássica e revolucionária. (…)
Toda a sua obra, aliás, se orienta por [uma] tentativa de superação (…) dos antagonismos entre escolas literárias (realismo social, surrealismo, experimentalismo) (…). Esta superação tem raízes filosóficas na dialéctica hegeliana e no marxismo, reconhecidas pelo próprio escritor. Para Jorge de Sena, a poesia era, ela mesma, uma forma de testemunhar e transformar o mundo; da relação estabelecida entre o sujeito poético e o objecto que ele tomava como matéria da sua poesia resultava uma outra entidade — o próprio poema, objecto estético constituído por meio da linguagem.
A poesia era, assim, uma forma de intervenção, embora entendida de forma diversa do neo-realismo. (…)
do blogue As Tormentas]
(1) Treponemas - espécie de protozoários (seres vivos unicelulares) parasitas, do grupo das espiroquetas, que inclui o agente causador da sífilis (Dic. Porto Editora).
Foto de destaque: “Na poesia”, de Inês Ramos.
Fonte: http://passapalavra.info/
domingo, 14 de março de 2010
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