segunda-feira, 1 de março de 2010

Haxixe em Benjamim


René Magritte: Violação - 1948

Haxixe em Benjamim

Marcelo Chagas

Banhar-se no rio de memória de Benjamim. Teoria da História como suco de uvas. Ler e escrever a mentalidade de um época com imagens, caligramas, fios de Ariadne, fios de cabelo que a mãe persiste em pentear, arrancando os sonhos ao amanhecer e transformando-os em desenho de letra. Pesa com a balança da melancolia de Dürer as variáveis culturais da percepção, como aquele fisionomista que cientificamente mede as alterações entre um sorriso e uma lágrima. O diálogo indolente com autores como Huxley, Hesse e Baudelaire costura a reflexão sobre esse estado alterado de consciência através de aforismos, notas "clínicas" e poesia. Esse tecido, fragmentado, polifônico, repetitivo, colcha de retalhos, abre mão do lastro científico e filosófico tradicionais e flana o fluxo das imagens captadas pela retina e pela mandíbula dormente de comedor de haxixe. Coup des dents.

Arquitetura oscila entre os fios orgânicos da arquitetura de ferro da nova Paris e o arquivo das formas barrocas alemãs. Ornamento, concha, vagina, toca, subway. Esse quase texto se faz em suas dobras, onde se vê dobrado, partido e espelhado. Rosto-paisagem. Como o oscilar das cortinas pelo vento. Souffle. Parole. Verbo-vento. Ruínas e projeto coabitam essa cidade mental. Rosto-cidade. Um narrador fisionomista. Filósofo de multidões. Poesia épica num sorriso.

"por trás da duração absoluta e do espaço imensurável, persiste no sorriso beatífico um humor prodigioso, que se atiça ainda mais diante da ilimitada ambigüidade de todas as coisas."1

"Fique idêntico ao menos um instante!" suplica Benjamim, na despedida de si mesmo. Por um fio. Esse fio que delineia o instante narcísico, rosto-ruína, "rugas da renúncia", espelho moderno. Um mundo que transforma o tabu em bits de informação: dados. "Tudo é dado"."...não abolirá". "Deus não joga..."

"toda a pessoa por um fio não se torna milionária"2

Filósofo de multidões, toda a pessoa por um fio não se torna milhões. Afasia ótica num friso."O passado não é fixo." Benjamim percorre seus becos e alamedas com fome de espetáculo. O cair dos dados da mão do jogador. "Eu pasmei de invejar tanta pobre criatura, correndo ao hiante abismo, e de alma alucinada, que tem no próprio sangue a embriaguez que procura..." Dados caem como gotas, inteligíveis por si mesmas, pois todo pensamento as emitem. Filósofo das verdades do coração, Benjamim não se esforça por generalizar o rio onde se banha. Rio de saliva, do comedor de haxixe. Rio de memória.

Uma memória que escreve o futuro com fios de sonhos transformados. Fios que desenham um retângulo vazio habitável: folha. "Mas meus dedos também escrevem em outras latitudes, e o ar que sopra através do meu caderno e vira as páginas sem que eu perceba, quando caio no sono, de maneira que o sujeito fica longe do verbo e o objeto aterrisa em algum lugar vazio, não é o ar desta penúltimamorada, ainda bem. E quem sabe, em minhas mãos, haja o murmúrio das sombras das folhas e das flores e o fulgor de um sol esquecido."3 Uma memória que escreve o futuro com fios de sonhos transformados. Fios que desenham um retângulo vazio habitável: folha. Ecos do porvir: História como ruminação.

Escrever em língua estranha, adormecida pelo haxixe, acende-se a luz: "São as próprias cócegas." Rosto-muro: tela em branco. Deves ter cuidado com as cores: acontecimento, despertar. Benjamimacorda no riocorrente dialético das intencionalidades que delineiam um período da história. Túmulo-glote: Grübler. Poço e pêndulo: Graben. Escava o buraco-negro do rosto, reentrância, captura. Máquina de captura. Rosto-corpo: rosto-legião.

"Fique idêntico ao menos um instante!" Fio que o enforca. Na fronteira entre o totalitarismo e o barroco.

À sua imortal saúde, Velho Bode!

1 - Benjamim, Walter - Haxixe.pg 22.trad. Flávio de Menezes e Carlos Nelson Coutinho. apres. Olgária Chain Féres Matos. São Paulo: Brasiliense.1984.
2 - Benjamim, Walter - Haxixe.pg 15.trad. Flávio de Menezes e Carlos Nelson Coutinho. apres. Olgária Chain Féres Matos. São Paulo: Brasiliense.1984.
3 - Beckett, Samuel-Malone Morre .pg 78.trad. Paulo Leminski. São Paulo:Círculo do Livro.1990.

Fonte: http://www.revista.criterio.nom.br

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