quinta-feira, 11 de março de 2010

Edson Nery: Demóstenes Torres cometeu pecado ao citar Freyre - Por Claudio Leal

Edson Nery: Demóstenes Torres cometeu pecado ao citar Freyre
Claudio Leal

-Edson Nery da Fonseca e Gilberto Freyre: amizade de mais de 40 anos. Nery é uma das maiores autoridades na obra Freyre.

Woody Allen e Diane Keaton estacionam na fila do cinema, em "Annie Hall" (1977). Bem atrás, um intelectual matraqueia pedantismos sobre Fellini - "falta estrutura coesiva" -, televisão e, isso mesmo, você lembrou: Marshall McLuhan, o autor de "O meio é a mensagem", em moda nos anos 70. Contestado por Alvy Singer, personagem de Allen, o chato cinematográfico apresenta a credencial: "Eu lecionava em Columbia sobre 'TV, Mídia e Cultura' e acho que minhas ideias sobre o sr. McLuhan têm imensa validade."

Para vencer a discussão, Singer puxa de um canto o próprio McLuhan.

- Ouvi o que você disse. Não sabe nada do meu trabalho. É espantoso que o deixem lecionar uma cadeira do que quer que seja.

"Se a vida fosse assim!...", arfa o paranóico Alvy Singer.

Depois de uma intervenção no debate sobre as cotas para negros nas universidades, no Supremo Tribunal Federal (STF), o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) é candidato a um lugar nessa fila. Será impossível desenterrar Gilberto Freyre para contestá-lo, mas o maior gilbertófilo brasileiro, o professor Edson Nery da Fonseca, 88 anos, desautoriza sua análise de "Casa Grande & Senzala", a respeito da escravidão no Brasil.

- Demóstenes Torres isolou frases. Isso é um pecado literário muito grave. Ele citou errado, tirou do contexto. O jornalista Elio Gaspari deu uma boa resposta a isso numa coluna.

Na audiência promovida pelo ministro do STF, Ricardo Lewandowski, o senador do DEM enfrentou apupos ao explicar a formação do povo brasileiro: "Nós temos uma história tão bonita de miscigenação... (Fala-se que) as negras foram estupradas no Brasil. (Fala-se que) a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. (Fala-se que) foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual."


O relato histórico gerou um desdobramento jornalístico. Os repórteres da Folha de S. Paulo, Laura Capriglione e Lucas Ferraz, que descreveram a intervenção de Demóstenes no Supremo, foram chamados de "delinquentes" num artigo do sociólogo, geógrafo e especialista recente em navios negreiros, Demétrio Magnoli. A manchete "DEM corresponsabiliza negros pela escravidão" o estimulou a rebuscar os adjetivos na catilinária publicada na própria Folha.

Direto de Olinda (PE), onde mora na Rua de São Bento, o biblioteconomista Edson Nery afirma que Gilberto Freyre sempre combateu o racismo no Brasil, mas suas ideias sofreram com as vulgarizações de seus intérpretes. Amigo por quatro décadas do sociólogo e antropólogo - trabalharam juntos de 1981 a 1986 -, ele é o narrador do documentário "Casa Grande & Senzala" (2000), do cineasta Nelson Pereira dos Santos.

- Gilberto Freyre foi um defensor da miscigenação. Nos Estados Unidos, ele teve um contato muito importante com o mestre dele, Franz Boas. Com Boas, ele aprendeu a distinção entre raça e cultura. Condições culturais nos sentidos amplos, antropológicos. E foi Gilberto que mostrou pela primeira vez que os problemas de deficiência no trabalho não decorriam da miscigenação, e sim do problema da alimentação. No caso brasileiro, o negro foi submetido a um péssimo regime alimentar - argumenta.

O intelectual pernambucano assistiu pela televisão aos debates do STF sobre as cotas raciais. Perto dos 90 anos, virou um admirador do Judiciário. "Achei admirável a iniciativa de Lewandowski. Estou entusiasmado com o poder Judiciário. Negaram o habeas corpus a (José Roberto) Arruda. E muito louvável também a decisão do STJ contra o banqueiro (Daniel Dantas). Mantiveram a Satiagraha e mostraram que o dinheiro não está comprando a Justiça".

Edson Nery critica os "grupos de redentistas negros" que pretendem transportar ideias americanas para o Brasil. Entretanto, ainda não definiu se as cotas são uma boa medida para reparar as heranças da escravidão. "Não sei. O problema das cotas eu acho muito complexo", pondera. Ele não camufla o incômodo com as questões apresentadas pelo movimento negro, que podem se configurar um preconceito contra os brancos.

- Acho muito prejudicial. Esses grupos de redentistas negros acham que existe preconceito racial no Brasil. Mas o preconceito não existe na medida que existiu nos Estados Unidos e na União Sul-Africana. O pior, o mais brutal do mundo, foi o da União Sul-Africana (onde houve o apartheid), por causa da influência da Igreja Holandesa Reformada. As Nações Unidas pediram por duas vezes estudos de Gilberto Freyre sobre a situação racial de lá ("Elimination des conflits et tensions entre les races"). Foram arquivados. Incluí num livro dele póstumo.

"Freyre não romantizou"
"Estou limitado ao Norte pela literatura / Ao Sul pela saudade da vida militar / A Leste por Gilberto Freyre / E a Oeste pelo Mosteiro de São Bento." Oblato beneditino, Edson Nery da Fonseca lançou em 2009 o livro de memórias "Vão-se os dias e eu fico", título inspirado nos versos do poeta francês Guillaume Apollinaire, no poema "Le pont Mirabeau". Nesse panorama sobre sua vida intelectual e afetiva - confessa sua homossexualidade ao estilo de Gide -, reservou muitas páginas para a amizade com Freyre, iniciada em 1941. Incomoda-se, e tem a autoridade de sua vasta bibliografia freyriana, com a tese de que o amigo romantizou a escravidão brasileira - manifestada, entre outros, pelo sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

- O Fernando Henrique disse que Gilberto Freyre romantizou a escravidão. Contestei isso numa carta. Os exemplos de maldades relatados por Gilberto Freyre são impressionantes, como o do senhor que comprou sapatos apertados e mandou o escravo ir até a cidade com ele. Agora, o que ele afirma é que isso (a perversidade) não foi uma generalização. Houve uma grande confraternização da senzala com a Casa Grande, os brancos se tornando amantes das escravas. Ele nunca usou o termo "democracia racial". Não é dele, e houve uma grande condenação a isso.

Recorda-se do gesto de um dos principais críticos do polemista de Apipucos:

- O que houve de mais desfavorável a Gilberto Freyre foi a atitude de Florestan Fernandes. Mas, engraçado, Florestan convidou o próprio Gilberto para a banca de Fernando Henrique Cardoso.

Num segundo telefonema, o professor complementa suas palavras com trechos do clássico da sociologia brasileira.

- Deixe eu pegar o "Casa Grande & Senzala". Um minutinho.

De volta ao gancho, inicia a leitura de duas partes do prefácio de Gilberto Freyre à primeira edição:

"A índia e a negra-mina, a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornaram-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agindo poderosamente no sentido da democratização social no Brasil. Entre os filhos mestiços, legítimos e mesmo ilegítimos, havidos delas pelos senhores brancos, subdividiu-se parte considerável das grandes propriedades, quebrando-se assim as forças das sesmarias feudais e dos latifúndios do tamanho de reinos"

Rapidíssimo suspiro. Folha virada, prossegue:

"O sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil, representado pela Casa Grande, foi um sistema de plástica contemporização entre as duas tendências. Ao mesmo tempo que exprimiu uma imposição imperialista da raça adiantada à atrasada, uma imposição de formas européias (já modificadas pela experiência asiática e africana do colonizador) ao meio tropical, representou uma contemporização com as novas condições de vida e de ambiente."

Em sua cadência beneditina, o gilbertólogo Edson Nery da Fonseca prova que recorrer aos originais é um antídoto contra citações excitadas.

Fonte: Terra Magazine

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