segunda-feira, 29 de março de 2010
The Hurt Locker: aprender a matar e morrer
The Hurt Locker: aprender a matar e morrer
"The Hurt Locker" (que no Brasil, como é de tradição, foi pessimamente traduzido por Guerra ao Terror) não trata de nenhum terror. No filme não há terrorismo, porque todos os alvos são militares. Aborda a resistência iraquiana contra a ocupação dos estadunidenses. Porque esse elemento não pode ser apagado da guerra, não é um Estado que domina o outro, tão somente, mas é uma população soberana que domina outra. Existe um gosto pela guerra, e há sustentação desse gosto pelos fluxos da população que se pretende dominante.
O artigo é de Cesar Kiraly.
Data: 28/03/2010
Devemos começar com uma pergunta: de que modo as imagens podem ser imorais? Esta pergunta parte de uma concepção que admite que existem imagens morais e outras imorais, e se pergunta sobre o como da imoralidade imagética. Uma imagem nunca é uma imagem isolada, o que também significa dizer que uma imagem nunca é uma imagem sozinha. Em toda imagem que aparece existem tessituras de imagens que sustentam o efeito de enunciação, o aparecimento, e toda imagem possui no seu pigmento uma paixão. Essas paixões podem ser culturalmente elaboradas, ao que poderíamos dizer que numa imagem também pode estar contido um valor. Assim como, a elaboração de uma imagem pode ser apenas uma estratégia cultural para esconder o significado da paixão dissolvida no pigmento que vemos. Dessa forma, quando as imagens interessam à investigação política é necessário que elas sejam submetidas a um esforço de crueldade daquele que se interessa pelo fenômeno, algo como uma crueldade na visão, para que a crueldade da imagem não possa restar escondida.
Então, de que forma uma imagem pode ser imoral? Justamente quando esconde a sua crueldade. O que devemos fazer diante de uma imagem imoral? Investigá-la no sentido de expor a sua composição. Assim, nenhuma imagem imoral é essencialmente imoral, ela o é no sistema de imagens que sustenta a sua imoralidade, o que significa que toda imagem pode ser exposta, algo como uma disposição do espírito a apreender com a insuportabilidade que algumas imagens, nos seus mundos, provocam. Uma imagem que tem a sua crueldade exposta passa a ser uma imagem que combate a crueldade. Expor a crueldade, portanto, é a tarefa da crítica.
The Hurt Locker (que no Brasil, como é de tradição, foi pessimamente traduzido por Guerra ao Terror) não trata de nenhum terror. No filme não há terrorismo, porque todos os alvos são militares. Aborda a resistência iraquiana contra a ocupação dos estadunidenses. Porque esse elemento não pode ser apagado da guerra, não é um Estado que domina o outro, tão somente, mas é uma população soberana que domina outra. Existe um gosto pela guerra, e há sustentação desse gosto pelos fluxos da população que se pretende dominante.
Assim, a vida na guerra não é tão distinta da vida em qualquer outro lugar, e como o modo de vida estadunidense é ampliado para lugares pobres, e nem tanto, podemos ver vidas muito parecidas com as dos combatentes em qualquer lugar. Qual é a vida de um combatente, tal como revelada na película? Ela é a vida de um adolescente médio, ou de um adulto que ainda insiste numa certa adolescência. Poderíamos indagar que isso se dá, porque todos são muito jovens. Mas o fato é que os desarmadores de bombas usam robôs de plástico para fazer os primeiros contatos, entre uma coisa e outra jogam um desafio eletrônico com bastante violência, de noite, eles bebem bastante, e brincam de brigar, e, para completar, recebem ajuda psicológica comportamental, sob o aviso de que podem ser tudo o que quiserem ser, ou que a guerra pode ser uma boa experiência. Sem falar que se trancam nos quartos para ouvir heavy metal. Se uma vida é igual em suas imagens, e sustentação de imagens, penso que é bem provável que seja a mesma vida.
A forte imoralidade das imagens que ainda não foram exumadas por uma forte crítica da crueldade se esconde na afirmação logo inicial de que a guerra pode ser um vício. Compondo-se com a atitude bastante impulsiva do protagonista desarmador de bombas. Porque qualquer amante de peças de plástico é capaz de entender que a guerra é o seu mundo, mas que é preferível não lutar. Até aquele que parece ter na guerra a sua fonte única de felicidade, sabe, que, na verdade, não possui felicidade alguma. Não foi a guerra que lhe destruiu a vida, mas ela também nada lhe restitui.
Ela apenas dá oportunidade para que um morto vivo possa ter algum estímulo para andar. Ele, o desarmador mor, de alguma forma é o mais lúcido dos personagens, isso fica muito claro na conversa final com seu filho pequeno, que ainda não o compreende, ele parece explicar ao filho que de alguma forma, toda aquela felicidade infantil não significa que não possa a vida fazer dele um natimorto. Assim, o combate contra a guerra é o combate a uma forma de vida?
Este modo de vida do americano do norte que obriga os iraquianos a lutar uma confusa guerra de resistência possui um aprendizado da morte. Ou seja, a vida do estadunidense o prepara a morrer. Existe um difuso esforço de resignação quanto a perda dos entes queridos, jogos psicológicos muito populares de aceitação do mundo tal como ele é, brinquedos e dispositivos eletrônicos de violência etc. Contudo, como não é um aprendizado filosófico da morte, envolve, necessariamente, um aprendizado do tirar a vida do outro. A cena em que estão combatendo numa emboscada explicita bem esse princípio, uma vez que conseguem sobreviver, e o desarmador mor congratula o seu colega, bom atirador, com um conhecido: - boa noite, obrigado por jogar. Logo após ter acertado o oponente. O efeito de câmera lenta utilizado pela diretora ressalta ainda mais a fantasia de vida eletrônica que prepara o soldado para matar e para morrer. Mas o esforço de investigação não deve recair sobre a visibilidade, porque essa é bastante evidente, mas sobre a dramaturgia da sustentação das imagens, essa sim mais relevante.
A visibilidade não importa muito, ou não importa mais, porque sabemos de um modo geral que a pobreza e a violência, no nosso tempo, são cinza, um pouco pelo cimento, outro pouco pelos blocos de concreto, e mais ainda, pela poeira levantada pela manipulação ou explosão das entidades portadoras dessas cores. Ainda mais evidente, porque a dominação usa peças de plástico. A dramaturgia dessas peças de plásticos é o que me interessa. Os soldados estão todos em casa no meio de suas peças de plástico. Mas eles não estão em casa. Eles estão bem longe de casa exercendo o ofício perigoso de desarmar bombas. Mas parecem que se sentem em casa de alguma forma.
Em todo o cenário de violência, podemos cometer pequenas violências interpretativas. Todo esse plástico decorre de uma opção de direção. Na verdade, uma opção pelas imagens domésticas no campo de guerra. Afinal a dramaturgia desse filme de guerra é fortemente doméstica, ela chega a despertar aconchego. Essa nova guerra de plástico é irreflexiva de um jeito que só é franqueado aqueles que estão em casa. Até mesmo a resposta é aconchegantemente doméstica. O desarmador negro pergunta ao desarmador mor, mas como pode assumir o risco? E recebe a resposta que recebemos na mesa de jantar: - Eu apenas não penso nisso.
Cesar Kiraly é doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, e neste coordena o Laboratório de Estudos Hum(e)anos.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/
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